A princesa foi até o seu aposento, de onde trouxe uma faca com umas palavras em hebraico gravadas na lâmina. Em seguida, mandou que descêssemos o sultão, o chefe dos eunucos, o pequeno escravo e eu a um pátio secreto do palácio e lá, deixando-nos sob uma galeria, avançou para o meio do pátio, onde fez um grande círculo, dentro do qual traçou várias palavras em caracteres arábicos antigos e outros, chamados caracteres de Cleópatra.
Quando terminou de preparar o círculo da maneira pela qual desejava, deteve-se no centro, onde fez abjurações e recitou versículos do Alcorão. Sem que percebessem, o dia foi escurecendo, até que sobreveio, na aparência, a noite. Sentimo-nos dominados de extremo terror, aumentado ainda quando nos vimos de repente na frente do gênio, neto de Eblis, sob a forma de um leão de espantoso tamanho.
“50º noite” in As Mil e Uma Noites. Apresentação de Malba Tahan. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 157-158.
Quando li essa passagem, fiquei atônito e, ao mesmo tempo, extremamente grato. Diversos pontos ali apontados – a faca com caracteres hebraicos, o círculo preparado com caracteres específicos, as abjurações e a entoação de versículos de um livro sagrado – tudo isso aponta para uma estrutura de magia que bem conhecemos.
E não são as únicas citações.
As Mil e Uma Noites (Alf Lailah oua Lailah – "Mil Noites e uma Noite") é uma obra de referência para o conhecimento dos contos árabes. Formado por contos de amor e aventuras, viagens, lendas fantásticas, anedotas, lutas religiosas, parábolas, apólogos, fábulas, poemas e resolução de problemas, foi traduzido em 1704 por Antoine Galland, orientalista francês a quem devemos o acesso a essa obra, ainda que o mesmo tenha suprimido todas as partes da que considerasse menos edificantes, eliminando os episódios eróticos, contrários à moral cristã e as citações poéticas.
Foi essa a tradução escolhida para a edição da Ediouro, de 2001, em dois volumes. O professor Mamede Mustafa Jarouche produziu, por sua vez, uma edição em três volumes que resgata os aspectos “história para adultos” presentes nos manuscritos (confira a entrevista do professor aqui, e um excerto da obra aqui).
Particularmente – e sim, eu tenho um gosto sui generis por contos – eu gosto de ambas as versões.
Algo semelhante ocorreu com os contos europeus e os irmãos Grimm (quer ter uma experiência do gênero? Assista à Branca de Neve versão “contos infantis” e depois assista à Branca de Neve na Floresta Negra, de 1997). Então, não acho ruim termos duas versões. Crescemos lendo fairy tales e depois assistimos O Labirinto do Fauno, de 2006. E nos encantamos da mesma maneira. Ali estão os vilões, os mocinhos e os eventos que embalaram nosso sono e sonhos, em uma roupagem que está de acordo com a nossa idade.
E a Arte é cheia de contos. Quando li Aradia: o Evangelho das Bruxas (Madras) pela primeira vez, o que mais me encantou, além, evidentemente, das conjurações, foi o aspecto emblemático dos contos. Ali reconhecemos o porquê de invocarmos nossa Senhora, pelos exemplos que obtemos na leitura.
Além disso, antes que a última lei contra a Bruxaria fosse revogada na Inglaterra, Gardner já havia publicado o “romance” Com o auxílio da Alta Magia (Madras). Nele, uma série de pontos posteriormente descritos tanto em livros do próprio quanto das gerações seguintes de Gardnerianos e dissidentes são citados e apontados em detalhes (aplicabilidade por sua conta e risco).
E voltamos cá às Mil e Uma Noites.
Não sei você, mas eu tenho predileção por contos, como disse anteriormente. São curtos, precisos, e pedem a leitura de sua continuação. Como Allan Poe, por exemplo – não dá para ler um conto só; quando se vê, o livro se foi todo e a ânsia por mais se estabeleceu.
E, atualmente, com toda a interface que possuímos para acessarmos informação, creio que a comunicação pela fala tem sido a mais difícil. Entonação e digitação não combinam. Aprendemos a digitar trocentos caracteres por minuto, mas não aprendemos a nobre arte de traduzir intenções em letras e números. E nisso, a leitura é fundamental. Existem autores e obras que nos levam a rir, chorar, silenciarmos os desejos, ampliarmos nossa coragem. E a habilidade de incitar esses sentimentos é adquirida pelo exemplo previamente lido e pela prática constante. Escrever é uma arte.
Some-se a isso que o livro, como veículo material de ideias, possui um potencial simbólico que suplanta qualquer interface contemporânea. Evidentemente, daqui a uma ou duas gerações, poderemos ver o que digo cair por terra (levando-se em consideração que eu acredito em reencarnação e não sou bom o bastante para acreditar que essa é minha última).
E, n’As Mil e Uma Noites, temos esses dois aspectos correlacionados. A fala, a entonação, daquele que lê para aquele que escuta – ainda que estejam os dois papeis representados pela mesma pessoa em uma leitura silenciosa.
Não só inspiradoras de comportamentos, mas também de imagens, as histórias d’As Mil e Uma Noites serviram de tema para uma série de ilustrações produzidas na década de 20 do século passado pelo orientalista francês Léon Carré (1878-1942), para a tradução da obra para o inglês elaborada por sir Richard Burton.
Hoje temos acesso a um Tarô, homônimo, que nessas imagens encontrou inspiração e ilustração. Publicado e 2005 pela Lo Scarabeo, tive a honra de manipular o pertencente ao Carlos Karan, em julho; desde então, não tive outro desejo senão esse – adquirir um.
A maior reclamação que vi, referenciado pela internet, para este baralho, é a ausência de conexão entre imagem e significado a partir dos contos. Evidentemente, partimos do fato de que esse Tarô é uma adaptação de imagens pré-elaboradas com fim diverso daquele a que veio servir. Sugere-se, inclusive, que este baralho não faria sucesso justamente por essa lacuna, carecendo de um livro explicativo que ampliasse a percepção das correlações feitas para sua elaboração (temos algumas sugestões aqui).
Estou lendo As Mil e Uma Noites justamente por isso.
Em breve, espero oferecer algumas correlações e interpretações para as cartas à partir da obra. Levando em consideração a funcionalidade original das imagens, sugiro, a quem possa, que consulte especificamente a tradução produzida por sir Richard Burton. Certamente insights brilharão diante dos seus olhos!
Existe outro Tarô dedicado às Mil e Uma Noites, produzido por Giacinto Gaudenzi (autor, entre outros, do Celtic Tarot e do Decameron Tarot, ambos Lo Scarabeo) com uma proposta mais erótica. Publicado em 1994, possui 99 cópias em preto e branco, tendo algumas, por volta de dez, sido coloridas à mão pelo artista.
Voltando, contudo, ao que propõe esse artigo, este é um livro que não deveria faltar na biblioteca de nenhum Bruxo. Por conseguinte, este baralho também. Pois, como vemos na citação que abre o texto, existem pontos de convergência de pensamento entre a Bruxaria Moderna e a cultura islâmica que só obteríamos se lêssemos despidos de preconceitos – o que nem sempre ocorre.
Além disso, da correlação imagem – obtida no baralho/conto, obteremos uma fonte inesgotável de histórias para os pequenos: para nós, as cartas funcionarão como recurso mnemônico para elaborar a história, e, por vezes, ressignificá-la; para eles, ilustrações preciosas para seus sonhos e, caso seja o destino deles, os primeiros passos na cartomancia.
Lindo
ResponderExcluirPost maravilhoso! Pena não termos 300 anos de vida para reler, de tempos em tempos, todos os livros que merecem ser relidos. Tenho essa edição da Ediouro que li na adolescência. Hoje, merece uma leitura "antropológica". E amanhã?
ResponderExcluirAs imagens do tarô, isoladas, podem não ter correlação direta com os contos. Mas o baralho completo conta qualquer história.
Jamile Dion.