Um dia, quando o mundo ainda engatinhava e o sol bocejava, a Lua foi homem.
Depois ela foi mulher.
Depois ela aprendeu a ser o que bem entendesse.
Nós, que aqui estamos, com um mundo fazendo dieta e um sol fazendo crossfit (tudo pela aparência perfeita), não lembramos do luminar conforme sua história; passamos a criar histórias que preenchessem nosso vazio da presença dele. Como qualquer celebridade, ele não é muito afeito a esses assédios de paparazzi.
Então chegamos a ele de esguelha, fingindo pouco interesse, para que ele não nos perceba. Os que vieram antes, com seus olhos compassivos, lembram e contam histórias do tempo em que o mundo e o sol só queriam brincar. Naquela época, o luminar que hoje conhecemos como lua... Era homem. E gostava de moças bonitas.
Enquanto caminhava pelo seu campo negro, o luminar olhava o mundo e via o brilho dos olhos das moças, e sua beleza se refletia nelas. Não havia quem pudesse negar o seu abraço, e ao amanhecer, ele se recolhia com elas.
Não todas; só as mais bonitas.
Havia uma moça muito bonita. Naiá era seu nome. Mas aquele que é a lua que hoje é o que bem entender mas já foi mulher e um dia foi homem, parecia não se importar com ela.
Naiá sonhava durante o dia e seguia insone, todas as noites, esperando que seus olhos trouxessem seu amado para seus braços. Mas ele parecia não ver seus olhos suplicantes.
Os mais velhos, que ninaram o sol quando este era um bebê e cercavam o mundo dos perigos para que ele crescesse forte, avisaram Naiá: aquelas que o luar levava, não voltavam mais. Tomadas pelo brilho do luminar, tornavam-se com ele unas no céu, na forma de estrelas. Algumas tropeçavam e caíam, e nessa hora se fazia um pedido: a cadente era salva e o pedido, atendido.
Naiá não se importava. Não comia, não bebia, mal dormia; e se ele, no seu descuido, estivesse olhando justo naquele instante e ela, distraída, não o visse?
Uma noite, Naiá caminhava, mudando o ponto para ver se o luar a via. O problema devia ser a aldeia: todas as moças eram bonitas e nenhuma havia sido levada até então. Naiá pôs-se a caminhar... Seus pensamentos divagaram... Dizem os mais velhos, que deram de mamar os sonhos que tornaram o sol forte e derramaram libações para que a terra se nutrisse, que quando a mente divaga os pés descaminham. Descaminhando, não se sabe aonde se chega, só se sabe que se chegará aonde se precisa chegar. Assim, os pés de Naiá a descaminharam até um lago, onde... Lá estava ele, se banhando!
Sua pele prateada tirou seu fôlego. Seus contornos másculos a inebriaram e ela suspirou de prazer. Finalmente conseguiria se unir de corpo e alma, amante e amado, dois em um.
E então, ela se jogou no lago.
O impacto do corpo despedaçou o sonho em diversos fragmentos de luz; ele não estava lá! Onde ele estivera - ou não estivera, a água em seus ouvidos dificultava seus pensamentos - ondas se formavam e empurravam seu corpo para frente e para trás, e ela já não via mais a borda.
E depois, ela já não via mais a superfície.
E depois, ela já não via mais nada.
O luar, que naquele instante mirava sua beleza em seu espelho d'água, ficou consternado por não ter visto aquela moça, tão bonita, tão apaixonada. O mundo estava crescendo a olhos vistos e ele já não corria seus dedos luminosos com a mesma facilidade pelo seu dorso macio. Quis trazer Naiá consigo, mas já era tarde: o lago já requerera seu quinhão. A beleza de Naiá lhe pertencia, pois ela de livre vontade abraçara-se a ele, ainda que não fosse seu o abraço desejado.
O luar, entretanto, era mais velho, pois ele ainda era homem e nós, que aqui estamos, não lembramos de quando ele foi homem, depois mulher, depois o que quisesse. E, eu não sei dizer o porque e nem quando foi decidido que assim seria, só sei que é assim: os mais velhos dizem o que os mais novos devem fazer, e os mais novos aprendem com a experiência dos mais velhos para viverem melhor. E o luar exigiu sua parte: o corpo era do lago, mas a alma de Naiá era sua.
E assim, entre os mundos do lago e da lua, do laço entre imagem e espelho, surgiu uma planta, cuja forma está firmemente ancorada no lago, mas cuja força está na delicadeza de suas pétalas buscando o abraço do luar. E se você for cuidadoso, e olhar de esguelha quando o luar estiver se mirando no lago, poderá ver os olhos de Naiá faiscando. E com ela aprendemos que, ao querer a Lua, é melhor evitar o lago.
Esse texto veio meio por acaso. Estamos tão acostumados a associar certas cartas com gêneros que esquecemos que os gêneros nos pertencem, não ao baralho. Um Imperador pode representar uma mulher, pois ele não é o personagem que aparenta: ele é o adjetivo que a localiza naquele instante.
Afirmarmos que o gênero é reforçado pelas imagens de um baralho é um equívoco que acontece às vezes... Então, como exercício, eu mesclei imagens do Tarô a imagens da lenda da Vitória Régia,para vermos como uma imagem é associativa e não reforçadora. O reforço está na nossa fortuna (ou pobreza) crítica.
Se aprendermos direitinho com Naiá, saberemos que devemos olhar o Luar, não o Lago - e essa é a lição do arcano XVIII. Ela é mais velha que nós e nós aprendemos com ela, para evitarmos os tropeços do caminho.
Porque aquele que está no céu e que chamamos de lua é o que bem entender, mas um dia já foi mulher... E antes, foi homem.
E gostava de moças bonitas.
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