domingo, 27 de março de 2016

XVIII. A lenda da vitória-régia.


Um dia, quando o mundo ainda engatinhava e o sol bocejava, a Lua foi homem. 
Depois ela foi mulher.
Depois ela aprendeu a ser o que bem entendesse.

Nós, que aqui estamos, com um mundo fazendo dieta e um sol fazendo crossfit (tudo pela aparência perfeita), não lembramos do luminar conforme sua história; passamos a criar histórias que preenchessem nosso vazio da presença dele. Como qualquer celebridade, ele não é muito afeito a esses assédios de paparazzi.


Então chegamos a ele de esguelha, fingindo pouco interesse, para que ele não nos perceba. Os que vieram antes, com seus olhos compassivos, lembram e contam histórias do tempo em que o mundo e o sol só queriam brincar. Naquela época, o luminar que hoje conhecemos como lua... Era homem. E gostava de moças bonitas.


Enquanto caminhava pelo seu campo negro, o luminar olhava o mundo e via o brilho dos olhos das moças, e sua beleza se refletia nelas. Não havia quem pudesse negar o seu abraço, e ao amanhecer, ele se recolhia com elas. 
Não todas; só as mais bonitas.


Havia uma moça muito bonita. Naiá era seu nome. Mas aquele que é a lua que hoje é  o que bem entender mas já foi mulher e um dia foi homem, parecia não se importar com ela. 
Naiá sonhava durante o dia e seguia insone, todas as noites, esperando que seus olhos trouxessem seu amado para seus braços. Mas ele parecia não ver seus olhos suplicantes.

Os mais velhos, que ninaram o sol quando este era um bebê e cercavam o mundo dos perigos para que ele crescesse forte, avisaram Naiá: aquelas que o luar levava, não voltavam mais. Tomadas pelo brilho do luminar, tornavam-se com ele unas no céu, na forma de estrelas. Algumas tropeçavam e caíam, e nessa hora se fazia um pedido: a cadente era salva e o pedido, atendido.

Naiá não se importava. Não comia, não bebia, mal dormia; e se ele, no seu descuido, estivesse olhando justo naquele instante e ela, distraída, não o visse?


Uma noite, Naiá caminhava, mudando o ponto para ver se o luar a via. O problema devia ser a aldeia: todas as moças eram bonitas e nenhuma havia sido levada até então. Naiá pôs-se a caminhar... Seus pensamentos divagaram... Dizem os mais velhos, que deram de mamar os sonhos que tornaram o sol forte e derramaram libações para que a terra se nutrisse, que quando a mente divaga os pés descaminham. Descaminhando, não se sabe aonde se chega, só se sabe que se chegará aonde se precisa chegar. Assim, os pés de Naiá a descaminharam até um lago, onde... Lá estava ele, se banhando! 
Sua pele prateada tirou seu fôlego. Seus contornos másculos a inebriaram e ela suspirou de prazer. Finalmente conseguiria se unir de corpo e alma, amante e amado, dois em um. 


E então, ela se jogou no lago. 
O impacto do corpo despedaçou o sonho em diversos fragmentos de luz; ele não estava lá! Onde ele estivera - ou não estivera, a água em seus ouvidos dificultava seus pensamentos - ondas se formavam e empurravam seu corpo para frente e para trás, e ela já não via mais a borda. 
E depois, ela já não via mais a superfície.
E depois, ela já não via mais nada.

O luar, que naquele instante mirava sua beleza em seu espelho d'água, ficou consternado por não ter visto aquela moça, tão bonita, tão apaixonada. O mundo estava crescendo a olhos vistos e ele já não corria seus dedos luminosos com a mesma facilidade pelo seu dorso macio. Quis trazer Naiá consigo, mas já era tarde: o lago já requerera seu quinhão. A beleza de Naiá lhe pertencia, pois ela de livre vontade abraçara-se a ele, ainda que não fosse seu o abraço desejado.

O luar, entretanto, era mais velho, pois ele ainda era homem e nós, que aqui estamos, não lembramos de quando ele foi homem, depois mulher, depois o que quisesse. E, eu não sei dizer o porque e nem quando foi decidido que assim seria, só sei que é assim: os mais velhos dizem o que os mais novos devem fazer, e os mais novos aprendem com a experiência dos mais velhos para viverem melhor. E o luar exigiu sua parte: o corpo era do lago, mas a alma de Naiá era sua. 


E assim, entre os mundos do lago e da lua, do laço entre imagem e espelho, surgiu uma planta, cuja forma está firmemente ancorada no lago, mas cuja força está na delicadeza de suas pétalas buscando o abraço do luar.  E se você for cuidadoso, e olhar de esguelha quando o luar estiver se mirando no lago, poderá ver os olhos de Naiá faiscando. E com ela aprendemos que, ao querer a Lua, é melhor evitar o lago.



Esse texto veio meio por acaso. Estamos tão acostumados a associar certas cartas com gêneros que esquecemos que os gêneros nos pertencem, não ao baralho. Um Imperador pode representar uma mulher, pois ele não é o personagem que aparenta: ele é o adjetivo que a localiza naquele instante. 
Afirmarmos que o gênero é reforçado pelas imagens de um baralho é um equívoco que acontece às vezes... Então, como exercício, eu mesclei imagens do Tarô a imagens da lenda da Vitória Régia,para vermos como uma imagem é associativa e não reforçadora. O reforço está na nossa fortuna (ou pobreza) crítica.
Se aprendermos direitinho com Naiá, saberemos que devemos olhar o Luar, não o Lago - e essa é a lição do arcano XVIII. Ela é mais velha que nós e nós aprendemos com ela, para evitarmos os tropeços do caminho.
Porque aquele que está no céu e que chamamos de lua é o que bem entender, mas um dia já foi mulher... E antes, foi homem.
E gostava de moças bonitas. 

domingo, 13 de março de 2016

Do Mago.



NÃO SE ILUDA COM o aparente descaso do Mago; embora blasé, ele está te olhando. De soslaio, oblíquo, com seu sorriso diáfano. Ele está atento à plateia - é assim que ele domina: Dando atenção indistinta a todos, sem prestar reverência a ninguém.

Traz consigo uma bolsa amarela tecida e recheada com todos os sonhos roubados de centenas de pessoas. Voilà! E mais um sonho, à guisa de enfeite, parte do antigo dono para o novo possuidor. O homem do saco, ameaça corrente, lenda urbana, em outra roupagem. 

Te afana do essencial, deixando o supérfluo. Senão, você sentiria falta.

Mestre das mágicas de cálices e varinhas, confira, sorrindo, a prataria quando ele sair. Hábil em somar para si, não raro subtrai dos outros. O show tem que continuar.

Nem jovem, nem velho, jovial; sempre um pouco mais experiente, não raro o mais imaturo experimentador. É ele quem vai na frente - e volta, para contar o que viu. À pé, é imbatível no seu foco. Ganha de qualquer homem, mas o castigo vem a cavalo.

Sua língua é prata líquida que escorre em nomes antigos e vislumbres de futuro. Todo Mago fala demais, mas quando quer dizer, a mensagem chega translúcida e sem ruído algum. Foco, eu disse.

Suas vestes são ricas, gypsies ou steampunk demais - naturalmente, o Mago é um vitoriano. Algo do gracejo da Belle Époque ecoa ali, mas ele insiste em manter uma aparência que vá na frente dizendo quem pode ou não se aproximar um pouco. Novamente, oblíquo. Todos lhe tem acesso, poucos sobrevivem ao Labirinto, menos ainda querem contar a história. 

Amar o inalcançável tem lá suas mazelas.

sábado, 12 de março de 2016

Um excerto. E uma reflexão.

Retirado do blog Diário de Biologia:


Alguns filósofos em suas proposições estabelecem uma ligação entre as palavras “humor” e “humilde”. Exemplos vivos dessa conexão podemos encontrar num passado remoto e até num mais recente. Numa forma primitiva de humor, os palhaços e bobos precisavam experimentar uma boa dose de humildade para arrancarem risos do público, já que esvaziavam-se completamente de qualquer senso de preservação de autoimagem. Em suma, para encarnarem devidamente seus personagens, precisavam não se levar tão a sério para levar seu público a fazer o mesmo, tornando a vida mais leve.


Hoje, vemos uma distorção desses valores quando alguns “humoristas modernos” invertem a ordem natural das coisas, procurando despertar risos alheios redirecionando essa humilhação para outros alvos, o que torna esta variante uma maneira fácil na prática humorística. Ora, para que eu preciso me humilhar e fazer o público rir de mim mesmo, quando eu posso simplesmente expor ao ridículo aqueles que parecem já ter vindo ao mundo como “piadas prontas”?

domingo, 6 de março de 2016

Curso Profissionalizante de Petit Lenormand: Módulo I. "As 36 Cartas"



Dia 19 de março, em São Paulo no Espaço Merkaba:
Módulo I do Curso de Petit Lenormand!
Nesse módulo, abordaremos as trinta e seis cartas do Petit Lenormand, diferenciando os significados conforme a abordagem tradicional europeia e a abordagem tradicional brasileira;
Encontraremos referências na arte para melhor compreensão de cada uma das cartas;
Trabalharemos jogos simples que nos permitem responder questões objetivamente.
Esse curso é montado anualmente, e todo o conteúdo foi revisto desde as edições anteriores, tanto no que concerne à bibliografia quanto à metodologia, permitindo que aqueles que nunca tiveram contato com o Petit Lenormand tenham gatilhos mnemônicos para total independência interpretativa dos livretos que acompanham os baralhos; para os experientes e praticantes, é oferecida uma abordagem coesa e vivencial para uma reflexão sobre a teoria e a prática desenvolvidas até então, seja ela conforme a leitura europeia ou brasileira; para aqueles que já fizeram o curso e desejam a reciclagem, pretende-se uma experiência singular frente o curso anterior, revisando todo o conteúdo oferecido através de outros olhares.
Será ímpar.
Aguardo você!


DATAS DAS PRÓXIMAS AULAS:


30/04/2016 - Módulo II - MESA REAL
Neste módulo será apresentado um método de leitura completo: a Mesa Real, que aborda todas as áreas da vida do consulente. Cada aluno terá acompanhamento do professor para a leitura de sua própria mesa real (pessoal).
Com o uso da Mesa Real, é possível realizar uma consulta completa, sem a necessidade de utilizar outros métodos, já que este é bem amplo e completo.

21/05/2016 - Módulo III - COMBINAÇÕES E NAIPES
Neste último módulo, o aluno terá acesso ao universo da leitura combinada de imagens (simbologia) e naipes, utilizando a Mesa Real e outros métodos simples de leitura.


INVESTIMENTO:
Cada módulo é independente, portanto o aluno, não tem obrigatoriedade de realizar os três módulos, exceto se desejar a formação profissionalizante.
- Valor de cada módulo: R$ 305,00 em 2x sem juros
- Valor do pacote profissionalizante (3 módulos): R$ 750,00 em 3x sem juros
- Valor especial para alunos que já realizaram este curso e desejam reciclar seus conhecimentos: R$ 250,00 cada módulo.

**CURSO COM CERTIFICADO E MATERIAL**
**GRATIS: BARALHO PARA VER A SORTE, DA COPAG**


INFORMAÇÕES E MATRICULAS:
(11) 3567.7538 | 9.7205.5181 (WhatsApp)
cursos@espacomerkaba.com.br

quinta-feira, 3 de março de 2016

Das alegorias e das ilustrações: quando encontramos referências à intenção do ilustrador.

Olá pessoal. Essa postagem está longe de ser definitiva, é apenas uma sinalização de algo que venho percebendo, um tema sobre o qual pretendo me debruçar nos próximos meses mais aprofundadamente. Entretanto, aqui e ali pincelo algumas noções, alguns meandros do que vejo. 
Desde o começo do blog, faço comparações entre a cultura e a cartomancia, sobretudo no que concerne às artes bidimensionais. A pintura e a gravura são, no limite, a mesma técnica usada na construção das imagens de um baralho. Entretanto, quais são as fontes para uma e outra categoria artística? Até onde podemos supor limites e possibilidades para uma e para outra?
Estou longe de me contentar com as respostas que obtive até o momento, e mais longe ainda de oferecer uma contribuição à altura dos meus questionamentos. Nesse ínterim, vou postando coisas que percebo associáveis e, à maneira do livro Conversas Cartomânticas: da escolha do baralho ao encerramento da consulta (breve teremos uma segunda edição, revista e ampliada - aguardem!), um dia terei material suficiente para oferecer em formato de livro.

Estava eu passeando numa galeria com os Emblemas de Alciato, e me deparei com a gravura XXIII, que posto abaixo. Imediatamente me lembrei do cinco de ouros desenvolvido por Arthur Edward Waite e Pamela Collman Smith para seu baralho.   


O texto para o cinco de ouros, traduzido por Cleyde Helena Monteiro Steigleder, diz:

Dois mendigos em uma tempestade de neve passam por um vitral iluminado.Significados divinatórios: a carta traz problemas materiais, sobretudo se na forma ilustrada - ou seja, destituição ou outra coisa. Para alguns cartomantes, é uma carta de amor e namorados - esposa, marido, amigo, amante; também concórdia, afinidades. Essas alternativas não conseguem ser harmonizadas. Invertida: desordem, caos, ruína, discórdia, dissipação.
Embora tenha vários pontos no texto que valem uma discussão sobre a proposta editorial de Waite e a função do texto na criação da imagem - algo que ele deixa claro na introdução do livro - o que pretendo mostrar com essa imagem é, na verdade, como os emblemas de Alciato podem nos auxiliar no entendimento da imagem em si (o que pode ou não concatenar com a proposta de Waite, nosso problema iconográfico por excelência: ao afirmarmos algo para além do texto que acompanha o baralho, estamos concordando ou discordando do autor?
Vejamos a imagem XXIII.


O texto para a imagem diz (tradução livre):
Um homem cego ajuda um homem coxo. O coxo lhe empresta seus olhos. Cada um provém o que o outro não tem.

Perceba que, embora Smith tenha proposto um casal na imagem - talvez uma tentativa de Waite de harmonizar os dois significados apreendidos em sua pesquisa para o livro - a ideia de auxílio mútuo está ali, colocada tal como no emblema.
Muitos questionamentos podem ser feitos, a partir daí.
  • Waite, ou Pamela, tinham conhecimento dos Emblemas de Alciato ou obra equivalente?
  • A ideia proposta era a mesma do Emblema?
  • A ilustração corresponde à ideia do idealizador?
  • Houve algum limite criativo, de caráter material ou simbólico?
  • Podemos adicionar o significado de "ajuda mútua" (o título do emblema) ao conteúdo simbólico do Cinco de Ouros?
  • Seria o Cinco de Ouros a carta mais adequada para associar-se esse significado?
Como eu disse no começo desse texto, não tenho pretensão de propor ou obter uma resposta a curto prazo. Só a possibilidade já me deleita.
Abraços a todos.

Fontes consultadas:

ALCIATO. Liber emblemata. 
WAITE, Arthur Edward. O tarô ilustrado de Waite. trad. Cleyde Helena Monteiro Steigleder. Porto Alegre: Kuarup, 1999.
WAITE, Arthur Edward. Tarô: a sorte pelas cartas. Trad. David Jardim Júnior. Ediouro, s/d.