segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Oráculo da Cigana: um curioso baralho de Cartomancia


Conheci esse baralho ano passado, nas postagens do Alex Tarólogo. Primeira referência que conheci a respeito desse oráculo, mas não pensava um dia conhecer o baralho em minhas próprias mãos. E confesso que, tendo o conhecido em outubro, não achei que fosse tão bom. Não foi um baralho que acelerou meu coração imediatamente, mas, talvez justamente por isso, tenho o carinho por ele que o mantém entre meus favoritos. Existem paixões que demandam tempo e vivência. O estranhamento inicial não foi um obstáculo; antes, foi um caminho.
O meu, eu ganhei de presente da Priscilla Lhacer. Um mimo, um carinho que, makhtub! tinha uma razão de ser. Quando um oráculo chega às nossas mãos por vias misteriosas como um presente ou surpresa, é bom que estejamos atentos aos seus efeitos. E, nesse caso, os efeitos foram preciosos ao ponto de eu indicá-lo, veementemente, para quem se interessa por Cartomancia, sobretudo a italiana, no qual ele se baseia.
O baralho é formado por 52 cartas - o mesmo número de cartas de um baralho comum  - o que o predispõe a ser a ilustração de significados anteriores propostos para cada uma das cartas do baralho comum. Se hoje não possuímos acesso às referências que nortearam a elaboração das imagens, pelo menos podemos pressupor que a metologia do jogo será semelhante àquela que norteia sessões de Cartomancia. Muitas cartas, frases curtas, porém precisas. 

Uma possibilidade de desenvolvimento desse oráculo é ser uma contração do Vera Sibilla Italiana, hipótese altamente plausível, proposta pela Socorro, da De Keizerin Boutique (recomendo). Eu tenho encontrado alguns outros baralhos que também corresponderiam a esses desenvolvimento imagético de conceitos cartomânticos de matriz comum. Mas é cedo ainda para que eu possa afirmar qualquer coisa. 
Minha experiência com esse oráculo tem apontado que ele é precioso para revelar intenções e fazer previsões de curta duração. Nada muito extenso, nada muito amplo: aquilo que é passível de se resolver com uma frase, mais elaborada que um simples sim/não, mas menos elaboradas que um panorama.
Como exemplo, posto uma das minhas cartas favoritas, o Mercador. Eu pensei nela justamente por ela dialogar com as minhas leituras no momento - Malba Tahan, Rumi (indicação preciosa do Claudiney Prieto), Omar Kayyam e As Mil e Uma Noites (livro e baralho).  E daí, temos um primeiro passo para analisar as demais 51 cartas.


 O Mercador
Oráculo da Cigana
Lo Scarabeo

Seguindo a orientação do livreto que acompanha as cartas, vamos trabalhar com a formação do conceito da lâmina a partir do cruzamento entre o título e a imagem. 
Mercador é o título dado àqueles que mercadeiam. Que comerciam. Que levam e trazem. Em todos os sentidos.
Conforme o Dicionário Aurélio:

s.m. Indivíduo que compra por atacado para vender a varejo. / Negociante de panos. // Fazer ouvido de mercador, v. OUVIDO.
Estar em contato com várias culturas, com vários povos, fazem do mercador um personagem ambivalente. Por um lado, nunca saberão exatamente o que ele pensa, já que ele conheceu um mundo diferente demais para se prender unicamente aos limites do seu povo ou região; por outro lado, as questões a que se apega tem para ele um valor maior do que para aqueles que se mantém devido ao costume, ao hábito, num mesmo comportamento. Ele escolhe manter um comportamento, porque sua natureza o leva a voltar sempre ao local de origem, com o desejo de partir novamente.
Por outro lado, ele sempre saberá mais dos outros que os outros pensam que ele sabe. O contato com pessoas tão diferentes o deixa atento aos hábitos, tiques, vícios. Só assim ele sabe diferenciar pesos e medidas - pelo que não se diz, mas se deixa dizer... pelo que não foi dito.

Dentro dessa perspectiva, e poderíamos estendê-la muito mais, verificando filologicamente as demais possibilidades oferecidas - Mercante, Marchand, Mercader, Kaufmann - o Mercador é um personagem cujo olhar anseia pelo horizonte, a quem ninguém é ilimitado o bastante para uma análise comportamental. Os termos parecem ser a mesma coisa, mas não são. Significados se depreendem de termos aparentemente sinônimos e, pouco a pouco, percebemos que o poder do termo está em ser único, mas passível de ser substituído por algo que, mesmo parecido, não é igual. Como exemplo, pensemos no termo francês Marchand. Além de Mercador, esse termo define aqueles que entendem de Arte o suficiente para indicar a compra de algo; seria o representante de um artista. O intermediário. Apesar dos significados se tocarem, há que se notar expansões. Os termos se cruzam, se reproduzem, e significados se apresentam ante nossos olhos.


Atente, nessa imagem, para os olhos do Mercador. Através de seus olhos,
ele não só expõe sua mercadoria, como todas as possibilidades que encontrou
de belo em seus tecidos. Comprar-se-ia tecidos dele por seus olhos. 


Diante disso, da ideia de intermediação, tão concernente ao termo, vamos para a imagem. 
Apesar de estar ligado à ideia de viagem, de busca de mercadorias em locais distantes, nessa carta vemos essa ideia como secundária. Temos uma carta ativa nesse sentido - a Viagem, cuja iconografia do personagem remete à do Mercador. Aqui, vemos o navio ao fundo partindo, não sabemos se o navio deixou o mercador ou se irá buscar mercadorias para ele. Só sabemos que ele já não participa do processo - o que chega, ou o que parte, apesar de passar pelo Mercador, não lhe compete mais. O navio também aparece nas cartas Suspiros, Esposa e Consolação, mostrando aquilo que vem de longe... ou remete para longe.


À esquerda: Suspiros. À direita: Consolação.
Observe o navio, dialogando com o personagem principal.
Oráculo da Cigana
Lo Scarabeo


Se falamos do navio, falemos do mar. Como diria a Ana Carolina: "por que me mostra o mar, se eu quero ver o navio?" 


À esquerda: A Esposa. À direita: Desgosto. 
Em uma o navio. 
Na outra, a imensidão do mar.
Oráculo da Cigana
Lo Scarabeo


Diante da imensidão, os detalhes se diluem. Para o melhor ou para o pior. Além disso, o mar une o aqui ao lá. Com um horizonte de possibilidades no meio. O mar transcende o espaço visível, mostrando que o que se busca ainda não está ao alcance. Mas já é possível desejar. Além das já citadas Consolação e Suspiros, o mar aparece em Desgosto. Mas aqui o navio já não se vê. E a frase de Ana Carolina faz todo o sentido. Coloca os Suspiros ladeando Desgosto e dá uma olhada.
Dos diálogos entre as iconografias, partimos para o personagem principal. Um árabe, irmão dos árabes. Suas vestes apontam para isso. Moro, mouro. E aí precisaríamos entender como um italiano veria um mouro para sabermos como essa carta seria vista pelo italiano que a delineou. Novos sentidos se depreenderão disso. Se você der uma olhadinha nesse link aqui, ficará sabendo que os italianos já dominaram a Líbia, durante o declínio do Império Otomano, na chamada Guerra Ítalo-Turca, em 1911. Apesar de italianos terem ocupado o território, eles não foram capazes de colonizar o espaço, perdendo terreno durante a I Guerra Mundial. As culturas coexistiram como água sob azeite. O conflito mistura, o tempo assenta cada coisa em seu lugar - conforme seus atores veem a questão de "lugar".
Alguns barris, caixas, e um acolchoado no qual esse mouro se apoia, correspondem às suas mercadorias. Ele está a postos, pois se dali se afastar, perde o que tem - é sua presença que atesta que o que o rodeia é dele. Mas sua posição é relaxada - logo, carregadores irão levar o material para o local correto.


Espera
Oráculo da Cigana
Lo Scarabeo


Seu olhar se perde à frente, como em SuspiroEspera. Se o olhar se perde, é porque os pensamentos importam mais. E não são pensamentos coesos, direcionados; são sonhos, devaneios, alimentados pela espera, que permite uma certa esperança.


Sinbad conta sua história ao carregador.
Seis de Ouros
Tarô das Mil e Uma Noites
Lo Scarabeo


Se nos remetermos à literatura, sobretudo Às Mil e Uma Noites, veremos que a figura do jovem afoito por aventuras, que vende tudo o que tem em busca de negócios no estrangeiro é recorrente. O personagem mais emblemático dessa perspectiva é Sinbad, que, por sete vezes, vende o que tem e sai em busca de aventuras. E da história de Sinbad apreendemos outros detalhes: quando vivemos algo maravilhoso, precisamos compartilhar com alguém. 
A história de Sinbad ocorre nos tempos do Califa Harun Al-Rashid, personagem que também se carrega de significados. Conforme consta, ele se disfarçava de mercador para visitar seu reino, de forma a assegurar-se pessoalmente de que tudo corria bem. Diversas histórias d'As Mil e Uma Noites o referenciam, seja como marco temporal ("No tempo do Califa Harun Al-Rashid..."), seja como personagem. Como personagem, talvez, seja o mais interessante. Ele é curioso, imiscuindo-se em qualquer assunto que considere interessante; contudo, não revela sua identidade até o momento oportuno, saindo-se muito bem como mercador para alguém que foi treinado para ser Califa. Conforme vimos antes, ao Mercador pertencem todos os pensamentos que o rodeiam, enquanto seus pensamentos não pertencem a ninguém. Ele precisa contar sua história, ele deseja contar sua história. Mas você jamais conseguirá ler seus pensamentos.
Daí, poderíamos sintetizar os significados observados em algumas palavras-chave, para além das óbvias comércio e troca: Intermediação consciente e proveitosa. Saber ouvir. Captar intenções com facilidade. Estar longe do que é familiar, ou ansiar por esse distanciamento. Notícias que vêm de longe. Um presente aguardado. Espera ansiosa, resultado breve. Uma história. Lucro, dividendos. Contato com culturas diferentes. Afirmação da identidade. Disfarce temporário. Teus pensamentos são terra de ninguém. Conhecimento de causa. Ansiedade pelo novo. Aguardo de novidades. Estar em território estranho. Diplomacia. O que se vê é mais precioso do que o que se ouve.


É muito divertido fazer isso, observar um oráculo novo com olhos de primeira vez, caçando respostas às indagações que surgem. Desses mergulhos, obtemos respostas preciosas às possibilidades de interpretação do oráculo. Eu não fazia a menor ideia de que chegaríamos aonde chegamos com esse texto - eu só escolhi a minha carta favorita, e saio mais rico na minha leitura dela. Dá um pouquinho de trabalho, mas vale a pena - quem falou que Cartomancia é fácil?
Abraços a todos.

Post Scriptum: Há um livro sobre esse baralho, com visualização acessível aqui. O irmão Euclydes Cardoso Jr., do TarotCabala, publicou o seu primeiro olhar sobre as cartas, aqui. Vale a leitura, vale o mergulhar nas imagens. O Ricardo Pereira, autor do Substractum Tarot, postou sua vivência com esse baralho aqui, vivência essa que dispensa comentários e atesta a rapidez das previsões.  E, caso queira adquirir o seu, clique aqui.

Atualização em 07 de novembro de 2012: Alguns links interessantes para o entendimento da profundidade dessa lâmina: aqui, aqui e aqui

11 comentários:

  1. "Comprar-se-ia tecidos dele por seus olhos. "
    Bom, meu caro Mercador, agora sim tenho mais vontade de adquirir este oráculo .Seu texto nos instiga e nos fascina.
    Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É um baralho e tanto. Eu tenho feito esse exercício de caçar referências em diversos pontos para conversar com essas cartas adequadamente. Cada novo passo com ele é um caminho inteiro.

      Excluir
  2. irmão Emanuel.
    Poética és esta introdução a este maravilhoso oráculo.
    Juntos vamos evoluindo e aprendendo com ele.
    Vamos refletindo, sentindo e poetizando estes 52 arcanos...
    um forte abraço.
    Jr.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Irmão, obrigado por suas considerações. E sim, vamos a fundo nessa pesquisa e nos resultados que elas podem nos trazer. Baralhos são baralhos e de baralhos constroi-se um mundo. Forte abraço!

      Excluir
  3. Faltou dissertarmos sobre a expressão "fazer ouvidos de mercador". Expressão essa que possui duas possíveis raízes para um mesmo resultado.
    A primeira provém do próprio termo "mercador". Fazer ouvidos de mercador seria não dar atenção ao que o interlocutor diz, só ao que diz, para poder efetuar boas vendas sem se ofender com a negociação alheia. Seria o complemento de "quem desdenha, quer comprar". Faça ouvidos de mercador e você vende para quem desdenha.
    Existe outro termo, do qual "mercador" seria corruptela: "marcador". Os marcadores eram os carrascos responsáveis por marcarem à ferro em brasa ladrões e escravos. Indiferentes aos gritos de desespero e dor, eles executavam sua tarefa.
    Em um e outro caso, é não dar atenção ao que é dito. O que dialoga diretamente com o sentido dessa carta: o Mercador lê os olhos e é indiferente ao que é dito, executando seu trabalho.
    Além do mais, conforme a Feminista de Arake (confira aqui: http://feministadearake.blogspot.com/2011/04/fazendo-ouvido-de-mercador.html), fazer ouvidos de mercador por vezes não é só positivo como necessário: quantas vezes desejamos algo e a opinião alheia "joga areia" nos nossos planos?
    Sejamos como o Mercador, únicos senhores dos nossos pensamentos e sentimentos. Devidamente à salvo da opinião e "conselhos" alheios. Por outro lado, prestemos atenção se não estamos deixando de ouvir informações importantes devido à impressão que temos de nossos interlocutores.

    ResponderExcluir
  4. Meus Parabens, adorei o seu post. Aqui na Italia O Barallho da Sibilla è muito conhecido, alias, parceiro fiel de todos cartomantes. Nos aqui chamamos ele de "fofoqueira" rs......O que tenho a dizer sobre o Baralho Sibilla della Zingara? È que esse foi copiado de um outro Baralho de nome La Vera Sibilla ( este mesmo uma reproducao do originale), este aqui https://picasaweb.google.com/104554353255343676700/LaVeraSibilla
    Como bem podem ver, o baralho è basado nas 52 carta comuns (poker) e as figuras reprentao um senario que risalta o significato mais importante da carta. As mesmas (La vera sibilla) trazem consigo palavras escritas que ajudao muito na leitura delas. Por esemplo : a carta da Carta, corrisponde a carta comum 2 de dinheiro (noticias, contatos,ecc), e como guia interpretativo : lettera o notizie per radio. Telefono (Carta ou noticias por radio . Telefonada). Oggi na Cartomancia moderna esta carta serà (e.mail, jornal, televisao, meg por telemovel, chat, computador, e todos messagem que chegao por escrito).
    modofocando o nome talvez para o unico motivo che consigo encontrare: vendas...

    Desculpem pelo meu Portugues, vivendo aqui da muitos anos perdi a pratica da escrittura e lingua Portuguesa... espero tervos ajudado mesmo com pouco no caminho da Sibilla ;)) Ate mais amigos

    Maria Odete Lopes Pinto

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Maria Odete, muito obrigado por suas informações. Realmente, o caminho por entre os Sibillas acabou de começar, e tenho muito pela frente ainda, para poder chegar a algum lugar... Enquanto isso, vamos jogando, anotando, vivendo e experienciando esse oráculo, que já se mostra poderoso! Um beijo!

      Excluir
  5. Linda surpresa pesquisar sobre o Sibilla Della Zingara no Google e encontrar como primeira referência o seu texto, Emanuel. Fluido, instigante e muito, muito elucidativo.

    O Mercador também é minha carta favorita; foi aquela que fisgou minha atenção na primeira passada de olhos pelo baralho. Feliz de vê-lo esmiuçado aqui.

    Confesso que, embora o tenha comprado na Confraria deste ano, até ontem o Zingara estava ali, paradinho, esperando minha aproximação. Mas agora, depois dessa leitura, ele não me escapa.

    Gratidão por esse e tantos textos que têm me auxiliado na caminhada autodidata da cartomancia.

    Um abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Leila. Sinto-me honrado e grato pelo seu comentário. De verdade. Que bom que você também gosta de mesma carta que eu.
      Partilhe conosco suas experiências quando quiser. Enquanto isso, vou publicando, aqui e ali, textos sobre os Sibillas - que variam em iconografia mas não em significado - e sigamos estudando.
      Qualquer dúvida, estarei às ordens.
      Um beijo!

      Excluir
  6. Olá
    Meu nome é Cássio e aprecio muito a cartomancia. Li seus textos e aqui vai uma dica. Pq vc não divulga o significado de todas as cartas da Sibilla Della zingara tão dificil de encontrar? Vc poderia esatar ajudando muitas pessoas, inclusive a mim. Pense nisso. Grato

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Cássio, tudo bem? Que bom que me acompanha por aqui. Espero continuar agradando :)
      Querido, a ideia é ir aos poucos, mas com profundidade. Os textos já publicados vão além dos significados básicos. São vivenciais. Mas, por outro lado, seria importante, sim, manter um registro dos significados básicos como um índice das postagens mais aprofundadas.
      dica anotada e em breve aplicada, aguarde :)
      Forte abraço e continue por aqui. Obrigado pela visita.

      Excluir

Quando um monólogo se torna diálogo...