Eu creio que serei repetitivo em dizer o quanto a Confraria foi importante para mim em termos de conhecimento - de temas e pessoas, não necessariamente nessa ordem. A Sarah foi uma das mais amáveis surpresas que obtive no evento. Com sua oficina de construção de Arcanos, mergulhei de cabeça na Força. Na Mystic Fair, fui de Torre. E quando dei por mim, havia saído uma Princesa de Copas (e olha que prefiro baralhos tradicionais, com Valetes!)
Artista e tarófila, como ela mesmo se define, amante de RPG, HQ e Pop Art, conversamos horas. E essas horas ainda são pouco para as horas que gostaria de conversar mais. É muito assunto! Hoje ela vem aqui mostrar seu companheiro de jornada, tão artista quanto ela, o Pajem de Copas. Vamos com eles.
Contato com a autora: Mercado de Arcádia
Lendo o Tarot Teachings encontrei essa passagem no Pajem de Copas, que me faz rir por uns quinze minutos. Afinal, é uma frase que eu costumo ver como a minha definição máxima.
“Eu vejo o mundo em Technicolor.”
Então, nós temos a cena. A moça, em seus all star vermelho cereja (que hoje em dia as pessoas falam converse, mas na época ainda eram all star, custavam mais barato que todos os outros tênis e significavam alguém que por opção fugia da moda), está andando pela exposição. Ela treme um pouco, segurando a respiração a cada peça que surge sob a luz, e então, algo que boa parte das pessoas não parece dar tanta atenção capta seu olhar. De repente, o museu, as pessoas, as placas, tudo ficou invisível, diante da caixinha de madeira manchada que está na sua frente. Um estojo simples de onde saem pincéis com os pelos gastos. A madeira tem pintinhas ocre e cinza escuro, assim como as cavidades na ponta do estojo, que ainda guardam um restinho de tinta. Cinzéis se espalham ao lado. Ela começa a soluçar. Aquele é sem dúvida alguma o lugar mais importante da exposição para ela. Ela chora ao ponto dos joelhos tremerem. Três mil anos antes, escribas e escultores egípcios usaram aquelas simples ferramentas para produzir a beleza de obras como aquelas de que o museu estava naquele momento repleto.
Pajem de Copas
Egipcio (Lo Scarabeo)
Sentir correr as águas de copas debaixo da pele é ter acesso àquilo que é mais invisível, por ser o que fica exposto diante de todos. É essa súbita percepção que molda uma personalidade e que passa a ser o cristal da lente com que todo seu contato com o mundo se dá.
(...)Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
(...)Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
(...)O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
(...)E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
O operário em construção
Vinícius de Moraes
Quem é o artista? Quem é aquele que é capaz de tirar a poesia daquilo que está a sua volta como um agricultor que prensa as olivas para extrair o azeite? Ezra Pound diria que os artistas são as antenas da raça. A experiência é a arma do Valete: ele é o estagiário do baralho, o aprendiz, e isso dá a perspectiva de um observador que tenta captar tudo e, bem sucedido ou não, experimenta fazer tudo o que observa. Ao pajem, o novo olhar.
Mais do que tudo, é esse posto de observador atento, que permite ao artista ser aquele que aceita ser tocado pela beleza – e moldado por ela. Mais do que o domínio da técnica, o aprendiz ganha a percepção de como o mestre move as mãos ou os lugares por onde costuma andar. Mais do que a forma como o cavaleiro segura a espada, o pajem aprende porque o cavaleiro empunha uma espada. E sendo este o pajem de copas, enquanto outros rezam ou dormem ele vai usar os movimentos daquela espada para dar verossimilhança à epopeia que está escrevendo e reescrevendo até considerar que pode vir a tona.
Pajem de Copas
Harmonious
Ao artista, a permissão para a alucinação, o preço pago por sentir e ver aquilo que ele permite aos outros desviarem o olhar. As pessoas na praça vão e vem, e o poeta grita – “agradeçam, agradeçam por sermos loucos por todos vocês. É a nossa loucura que impede que toda a cidade caia nas mãos da insanidade.” Aquele que abraça o caos paga um preço. Apanha para conseguir dar conta de tudo o que viu, e segue adiante com uma ferida que os outros não percebem, e que sangra a cada aniversário do combate – mas que permite ao Livro Vermelho do Marco Ocidental seguir adiante e ver a história ser contada. Ser o herói é só um pedaço do percurso – é preciso contar a história. E perde os prazos, e confunde as datas, e ainda se surpreende quando alguém faz algo por uma intenção mesquinha ao ponto de se ver incapaz de confiar.
Valete de Copas
Universal Fantasy
Sentada na areia, a moça tenta ler um livro. Consegue ouvir a corrida constante do menino que segue correndo para dentro do mar e volta correndo para a areia, inquieto, até que ela larga o livro, senta na linha onde o mar toca a areia, e ele senta sobre suas pernas. Os cachos compridos do menino escondem por alguns segundos olhos atentos ao movimento sutil que surge na poça formada pelas ondas sobre o buraco que cavaram juntos. Um peixe miúdo, prateado e pontilhado de preto, navega no círculo circunscrito pela areia. Ele quase cai para frente observando o peixe, como se uma muda conversação se desse entre os dois. Por longos minutos, tenta fazer o peixe subir na concha de plástico que usou para cavar a poça. Quando consegue, ergue a concha, em triunfo. De pé, ele ri. O peixinho salta para o mar, mas o menino não se preocupa em persegui-lo. Está mais preocupado em imitar seu movimento enquanto corre pela areia, ele mesmo sendo agora o peixe que observava.
Princesa de Copas
Via Tarot
Nota do editor: Em alguns baralhos, como o Via, os Pajens são substituídos pelas Princesas. Existem diversas possibilidades de análise dessa perspectiva; porém, em última instância, aplica-se tanto às Princesas quanto aos Pajens os mesmos significados propostos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Quando um monólogo se torna diálogo...