Passando os olhos pela minha coleção particular, e conversando com amigos sobre suas coleções, verifiquei que, em sua grande parte, as coleções não são norteadas para a prática do Tarô profissional, isto é, o gosto do colecionador é soberano às necessidades de uma ferramenta de trabalho. Utiliza-se um para a consulta e atendimento e vários para aulas e estudos.
Mas, o que norteia essa escolha, insisto? O que faz com que determinado baralho seja o baralho?
Eu senti que havia encontrado meu baralho quando abri a caixa do Ancient Italian. A sensação que tive, e partilho, é que ele pode ser manipulado por qualquer pessoa. Pode até mesmo ser embaralhado. Isso não tem a menor importância. Ele não foi consagrado em um ritual. Ele já me era sagrado. Ele já chegou pleno, sem necessidades de confirmações. Tal é minha certeza, e tal é o feedback que recebo das consultas feitas à ele, que vejo que ele foi o resultado de anos de busca, iniciada com um Marseille Jean Payen. Todos os baralhos anteriores foram uma preparação. Todos os baralhos posteriores, padrões de comparação. Ele é o meu baralho. Ele é meu.
Mago
1JJ
E isso ficou muito claro para mim há alguns dias. Adquiri um 1JJ da USGames Brasil, junto de um Thoth Mini (Blue Box). O 1JJ é um baralho suíço magnífico, clássico, e interessante, sobretudo, àqueles que possuem uma linhagem pagã de natureza grego-romana: Nesse baralho, temos uma das primeiras tentativas de substituição da Papisa e do Papa, cujos títulos até hoje causam incômodos em algumas pessoas. Nesse baralho, temos a Papisa substituída por Juno e o Papa substituído por Júpiter [daí o título 1J(uno)J(upiter)]. As demais cartas possuem correspondência clara àquelas do padrão Marseille. Conheci esse baralho em 2001, nas mãos de uma cartomante que, apesar do tanto que sabe, oculta seus dotes do grande público. Angela é seu nome. Porque certamente ela fala com seus pares diretamente, sem maiores intermediações.
Juno
1JJ
Desde então, tinha o desejo de obter um baralho desses. Desejo, não necessidade; mas diante da possibilidade, quem não confunde um e outro? Encomendado, ansiosamente aguardado. Em mãos.
Abri-o. E ao abri-lo, percebi o quão belo ele era in loco, em mãos. Manipulei-o. Mas algo estava errado. Ele não era meu. Era, objetivamente, porque eu o havia comprado e pago seu valor a quem cabia receber, mas não era meu, da forma como um baralho deve ser. O baralho, como a varinha da Arte, é uma extensão de seu proprietário. Aquele baralho não era uma extensão de mim, ainda que, aparentemente, fosse – eu me dedico ao estudo dos padrões marselheses, em especial, e aquele era um marselhês! Por que, por que ele não ressoava comigo?
À noite, encontrar-me-ia com uma grande amiga, também cartomante. A tentação de levá-lo era muito grande, mas, paradoxalmente, eu sabia que aquele baralho não voltaria comigo. E justamente por isso não queria levá-lo. Poxa! Onze anos para obtê-lo! Não, não quero desfazer-me dele. Não quero!
*pausa para birra com direito a bater os pezinhos e as mãozinhas com os olhos cerrados*
Lá fui eu, com meu Ancient Italian e o 1JJ na bolsa. O Ancient eu sabia que voltaria. O 1JJ, torcia para que voltasse.
Ela viu, seus olhos brilharam como quem acaba de descobrir que amores à primeira vista existem. Ela o tocou. Ela o manipulou, viu carta a carta. Como quem acaba de comer uma fruta exótica em um local distante de sua casa, e sabe que aquele deleite é único e precioso, tendo que ser aproveitado à exaustão – sabe-se Deus quando ter-se-á tal deleite novamente. E eu, observador que era da cena, tive a dolorosa certeza de que aquele baralho, definitivamente, não era meu.
Ainda fiz um último esforço em guardá-lo na bolsa. Mas voltar com aquele baralho seria ter a certeza de ter um objeto roubado em casa. Apesar de eu ter pago por ele, eu era apenas o intermediário entre a ferramenta e o proprietário.
O baralho ficou com ela. E, por mais que eu quisesse sentir o coração partido em 78 pedaços, eu sabia que ele nunca tinha sido meu.
Sol
1JJ
Mas a história não acabou aqui, ao contrário; foi aqui que ela começou. Na primeira oportunidade, ela jogou para mim com o 1JJ. E eu vi, naquele baralho, nas mãos daquela cartomante, uma mestria que eu jamais teria com um 1JJ – pois meu coração já tem um dono, italiano (que desliza em minhas mãos contando histórias antigas de um tempo em que esse corpo não era senão um brilho nos olhos de minha genitora quando ela sonhava com um futuro promissor) e não quero dividi-lo com mais nenhum outro; naquele momento, e diante da desenvoltura com que as cartas conversavam com ela, espanando os cantinhos da minha alma para entrar num ano novo com uma proposta integralmente nova, limpa e plena (surpreendente para ela e para mim, já que – aparentemente, nessa vida – era a primeira vez que ela havia visto tais imagens), naquele momento eu entendi que ficar com aquele baralho seria uma atitude não só mesquinha, como avara. Seria considerar a materialidade de um baralhomais importante que o serviço à Arte. Tenho a firme convicção de que não passamos de carteiros do Divino quando lemos as cartas, mas carteiros não só leem e anunciam como também entregam encomendas. Esta era, a priori a contragosto, a posteriori com pleno deleite, dela. Da minha cartomante. Não minha.
Um outro chegará para mim. Mas, quando ele vier, eu saberei exatamente qual é o papel que ele ocupará na minha vida e no meu trabalho. Porque este primeiro eu sei que cumprirá sua tarefa de oráculo perfeitamente. Já vem cumprindo, na verdade.
Fica aqui meu convite, meu desafio. Encontre o baralho do seu coração. E todo o resto passará a fazer pleno sentido. E todo o resto, fazendo sentido, perderá a importância – porque o seu coração está em casa, e de lá não mais quererá sair.
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