sábado, 4 de agosto de 2012

Biografia ou: da relação inversamente proporcional entre glamour e competência.

Olá pessoal. Vi, esses dias, no oceano de postagens do Facebook, uma pequena troça com alguns cartomantes com biografia semelhante à minha: Jogo Tarot desde os 13... e não tive professor de Tarot. Aprendi por aí com o mundo (Tum Dum Tss). O tom jocoso de uma frase como essa merece uma reflexão maior sobre o status do ensino-aprendizagem do Tarô no Brasil. Ainda temos alguns preconceitos e até mesmo um certo glamour no autodidatismo ou na hereditariedade que não são, no limite, interessantes para o crescimento e desenvolvimento da profissão.

Roda da Fortuna
Tarô das Bruxas (Ellen Cannon Reed)

A hereditariedade é, ainda hoje, um status desejado. Todos nós desejamos deixar nossa marca no mundo - alguns, destruindo, outros, construindo. Essa marca normalmente é deixada pela tarefa que desempenhamos, na maior parte das vezes profissionalmente. Em outras épocas, o ofício era tão importante que virava sobrenome: Taylor, Schumacher... Ainda que Elisabeth fosse uma atriz e Michael um piloto de Fórmula 1. Tradições se mantém ainda que não tenham mais o sentido original. 
E é aí que está. Nem sempre o que queremos passar encontra eco na alma daqueles que vem depois de nós, e não adianta dizer que filho de peixe, peixinho é porque nem sempre o mote funciona. A sociedade contemporânea ocidental carece de valores sólidos, por um lado, porque lutou pela sua liberdade de escolha e expressão, por outro. Toda ação gera uma reação.
E o oposto também é verdadeiro. Nem sempre o que queremos manter honra os nossos antepassados, ainda que tenha sido vivido por eles. Ninguém quer que seus sucessores tenham uma vida tão ou mais difícil que a que viveu. Buscam-se outras escolhas para os que vierem depois. 
E aí correlacionamos tudo isso com Cartomancia. Entre aqueles que pertencem e simpatizam com o meio, ser Cartomante hereditário soa como algo pomposo, glamouroso. Acreditem no que digo: não é. Você aprender com um parente é maravilhoso, sinceramente. Mas não acrescenta nem diminui nada na carga de estudos que temos que manter, ou no desenvolvimento das faculdades de leitura, notadamente a intuição. Essas coisas não vem por herança pura e simplesmente - habilidades tem que ser desenvolvidas, senão atrofiam. E isso é um esforço diário do estudante, não do mestre.
Eu aprendi Cartomancia com a minha avó. Mas engana-se quem acha que ela era uma Feiticeira-reencarnada-depois-de-anos-sendo-queimada-vida-após-vida-pela-Inquisição. Minha avó era uma mulher comum, com casa para arrumar, animais para cuidar, rosas (suas flores favoritas) e outras plantas para regar, ou seja, tinha bem mais o que fazer do que ficar explicando por horas a fio as possíveis combinações entre as cartas. Ela me ensinou o básico e disse: TREINE. 
Estou treinando até hoje. 


E, aproveitando o link, tem outro título por demais glamouroso, para além do que merece. Autodidata. Acho fantástico quem aprende um instrumento musical sozinho. Violão, quer coisa mais linda? Aprender sozinho é excelente em alguns aspectos. Você dá sentido a cada passo a partir da sua própria experiência. Por outro lado, o risco de desistir é muito grande, no meio do caminho, por não saber qual é o próximo passo. Existe também o risco de se contentar com pouco. Com aquilo que conseguiu sozinho, ainda que frente à necessidade sua conquista seja algo incipiente.
Eu sou tarólogo autodidata. Aprendi a lidar com os setenta e oito arcanos sozinho. Sozinho não; com os feedbacks de diversos clientes nesses onze anos de prática. Olha a palavrinha aí de novo: prática. Acrescente a ela muito estudo. Mas muito mesmo.
Não sou autodidata por opção. Não tem nada de glamouroso nisso. Eu sou autodidata porque não tinha dinheiro para comprar um baralho, que dirá para pagar um professor! Eu tinha quinze anos e não trabalhava, como aprender? Se eu não me virasse, jamais aprenderia qualquer coisa.
Comprei um baralho de segunda mão. Era um Jean Payen com os Arcanos Menores de outra edição marselhesa. Vinha com uma revista, que é boa, por incrível que pareça. Os textos são de fato muito bons. E dá-lhe estudar. E jogar. Na Biblioteca Pública encontrei mais alguns livros, mas eram sobre o Waite-Smith. Perae, mas o Sol não tem dois menininhos? Daonde apareceu esse cavalo? Cadê o outro menininho? Será que isso muda o significado? Será que esse livro serve para eu estudar? Será que funciona?
E assim eu estudei Tarot por uns bons três anos, entre atendimentos e literatura escassa. Hoje temos a Priscilla Lhacer para trazer com grande facilidade baralhos importados e raros para nós. Mas antes, devíamos nos contentar com as poucas edições que encontrávamos por aqui. Notadamente, do Tarô de Marselha e outros ligados à Escola Francesa.
E, claro, o Tarô Mitológico. Um baralho que fez escola no Brasil. Muitos de nós que começamos na década de noventa do século passado devemos a esta obra o estudo dos Arcanos Menores. Ainda bem.
Eu agradeço, enormemente, àqueles que confiaram em mim e inclusive me presentearam com baralhos e livros que eu não poderia ter obtido nessa época. Sem esse carinho, seria impossível que eu estudasse. Não por falta de vontade; era falta de obras, mesmo. 
Por outro lado, isso levou esse que vos fala a praticar muito. Olhar o Marseille Grimaud com olhos de primeira vez, sempre. Cada cor, cada forma, eram dissecadas ponto a ponto para que aquilo que o livro dizia fizesse sentido. Organizações das cartas estudadas à exaustão. Não haviam hierofanias ou desciam anjos para me contar segredos das cartas. Era só um olhar, e olhar era tudo.
Hoje, dado o esforço, dado o empenho, eu conheço minhas cartas o suficiente para saber que uma vida é pouco para conhecê-las. Eu não me ative ao posto de autodidata como um título, mas sim como um desafio. Creio que é assim que esse título deveria ser visto; não como um fim, mas como um meio, um caminho. Mais complicado de se trilhar, claro, mas ainda assim muito proveitoso.



Abençoado seja o momento em que vivemos. Em que temos um catálogo de obras muito legal e acessível a todos - se não a obra nova, temos a Estante Virtual para adquirir livros que já estão fora de catálogo. Temos acesso a uma miríade de baralhos, nacionais e importados. Se hoje eu tenho um Ancient Italian, meu baralho do coração, é porque a Nath trouxe para mim. Agora, é possível pedir para a Priscilla com pronta-entrega e competência. Hoje temos eventos que unem as pessoas em torno do ensino-aprendizagem: acabei de vir da Confraria Brasileira de Tarot e a Pietra e o Edu já organizaram outro seminário, desta vez de Tarô para Tarólogos. Quem estiver em São Paulo não pode perder.
As possibilidades se ampliam. Cursos se multiplicam, tanto presenciais quanto virtuais, com professores renomados. Que, inclusive, possivelmente passaram pelas mesmas dificuldades/desafios que aponto aqui.
Aproveitem as oportunidades que se delineiam na profissão. E esqueçam pequenos arroubos egoicos que permeiam a arte. Já são por demais démodé para merecerem atenção.
Abraços a todos.

6 comentários:

  1. Me fizestes lembrar do meu primeiro deck, um Marselha velhinho. da minha caça a livros e revista.. antigamente tudo era tão mais difícil e tao mais simples ao mesmo tempo.Muito mais gostoso

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    1. Pois é, Katharina. É inversamente proporcional a relação entre imagem e leitura. Bom ter mais informações, mas pena que a imagem perca o sentido... Ou vice versa.
      Saudades, também.

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  2. Acertou no meio. Sempre achei, e continuo acreditando nisso, que glamourização em acesso geralmente é pra suprir alguma ineficácia evidente e aparente. Qualquer tarólogo que se preze não deve se fazer anunciar por títulos, mas por exemplo de idoneidade. E isso só a prática dá, não é um "dom" a ser recebido do mundo divino.

    As pessoas tem que aprender a pisar firmemente com os pés no chão. Do contrário cai e o Diabo dança em cima, e dificilmente se levanta.

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    1. É uma coisa que eu fico pensando... Para quê glamourização? Para nada... Para nada. Acredito, Odir, que o trabalho antecede o indivíduo, e não o contrário. Tô contigo, nessa.

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  3. Eu gosto muito da palavra "facilitador" que andou na moda durante um tempo. Apesar de datada é bem como encaro minha posição frente àqueles que querem estudar. Mesmo que faça parte da nossa carreira dar uma complicada antes de facilitar... Mas é isso. Eu precisei da segurança de um professor quando comecei. Dois, na real. E devo ao segundo, Veet Vivarta, insights fabulosos.

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    1. Eu tive a sorte de ter acesso à informação, mesmo quando quis alguém que me apoiasse, Zoe. Aprendi pelas beiradas com nomes preciosos, como você. É um caminho mais complicado, mas vale a pena também.
      Um beijo!

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