sábado, 1 de outubro de 2011

O Mago Dionisíaco.



Olá pessoal. Não faço nenhum segredo sobre minha atual menina dos olhos, o Ancient Italian Tarot. Conforme a Taropedia e o Albideuter, o Tarô Soprafino ( de "supra" e "fino", ou seja "muito refinado", referindo-se ao fato de ser um baralho de alta qualidade - o termo diz respeito à segunda prensa do azeite para obter o azeite extravirgem) foi criado por Carlo Della Rocca (também grafado Dellarocca) e por Ferdinando Gumppenberg em 1835. O baralho segue o mesmo simbolismo dos baralhos da linhagem do Tarô de Marselha, mas em vez de ser feitos em xilogravura, são litogravuras, que permitem maior detalhamento da impressão. Tornou-se tão popular que foi reproduzido com pequenas alterações por vários fabricantes, dos quais o exemplar mais conhecido é a reedição conhecida como o Ancient Italian, fabricado em 1880 em Milão, Lombardia, pela Cartiera Italiana.


Edições diferentes do Soprafino: da esquerda para a direita:
edição Il Meneghello, Classic Tarot (LoS), Tarocchino Lombardo,
Ancient Italian. As diferenças são notáveis.

Atualmente o mesmo é editado pela Lo Scarabeo, sob curadoria de Pietro Alligo (diretor de arte da empresa e responsável por certo número de baralhos desenvolvidos pela marca), de onde provém minha edição
Eu tenho uma certa dificuldade com os baralhos "bonitos". Não que eu não goste da beleza, isso seria um contrassenso; o problema é quando o artista busca mais a estética que a simbólica e o respeito pela iconografia. Temos esse fator em uma série de baralhos e, sobretudo, nos baralhos temáticos, cujo tema suplanta a ideia de divinação. Se fôssemos jogadores de Jeu de Tarot, talvez pudéssemos utilizar tais baralhos favoravelmente; como leitores, são obstáculos mais que diálogos, dificultando nossa leitura dos símbolos e nos obrigando a trabalhar com conceitos.
O Ancient Italian é o baralho que, frente à iconografia proposta pelo Tarô de Marselha, mais se adequa ao conjunto de símbolos proposto. Sua beleza não suplanta sua aplicabilidade diante da literatura cartomântica presente no Brasil. O fato de ser feito em litogravura permite um maior detalhamento e a utilização de melhores hachuras e cores. As xilogravuras dos Tarôs de Marselha impedem um melhor uso do detalhamento dados os limites da técnica. 




Em alguns casos, a iconografia do Ancient Italian difere do Marselha nos atributos, e esse é um ponto de pesquisa e deleite ímpar. Alguns casos, como o Sol, onde um casal de dançarinos toma o lugar das crianças seminuas, é semelhante em significado - alegria, deleite, celebração, partilha. Em outros, como é o caso do Mago, temos que pensar um pouco mais.


À esquerda: Soprafino. À direita: Ancient Italian.
A iconografia é semelhante, com algumas divergências
quanto ao uso das cores.


Uma das questões norteantes da análise do Mago, na literatura que temos disponível no Brasil, diz respeito ao mesmo possuir uma varinha ou baqueta em sua mão. Essa ideia também é veiculada no Waite-Smith, onde o Mago não é mais o prestidigitador, mas o iniciado, aquele que interfere nas relações entre o mundo visível e o invisível.
Em um e em outro, ele é o "faz tudo". Um dos personagens mais emblemáticos dessa característica do Mago pode ser encontrado na história do Brasil (!):  Francisco Gomes da Silva, o Chalaça (esse personagem foi interpretado por Humberto Martins na minissérie O Quinto dos Infernos. Fica a sugestão para algumas risadas).
No Ancient Italian, o Mago porta uma taça. Todos os aspectos concernentes ao positivo, falo, ao poder, ao fogo, à luz, ao projetivo e ao influenciante caem por terra diante do negativo, vagina, à água, às trevas, ao receptivo e influenciável. Confesso que esse detalhe me incomodou durante um bom tempo.
Contudo, cada baralho é uma integridade que não deve ser mexida. Todas as cartas participam de um todo que deve ser respeitado. E, se eu me proponho a utilizar um baralho, devo respeitar os motivos e direcionamentos que nortearam o artista e o idealizador a grafarem determinados símbolos nas cartas. Nenhuma arte é inocente, e, sendo assim, devo me deparar com a queda da inocência sempre que me vejo diante de uma obra que me incomoda. Assim foi com essa carta. A expressão indecente e o cálice me incomodavam, dado estar eu acostumado, talvez por isso estanque, na interpretação do Mago como iniciado e como mercurial - por isso, enganador. O engano era possibilidade implícita, aqui, reitero, indecentemente explícita.
Por conta desses atributos, toda a conceituação que eu havia lido e estudado para o Mago caiu por terra, espalhou-se no chão, distribuiu-se em gretas e meandros de possibilidades interpretativas. E, nesse brainstorm forçado, vi-me disposto a rever tudo o que havia sido proposto para a atividade do Mago e tive que me debruçar sobre a ideia da taça. 
Justo a taça, tão ligada à Sacerdotisa, ao feminino, ao receptivo, ao dionisíaco...
Just it. Dionisíaco. 
Essa palavra fez todo um sentido para mim. E espero explanar minha visão para vocês.


Segundo Tiago Barros, em seu artigo "Nascimento e morte da tragédia ática segundo Friedrich Nietzsche" (disponível aqui)
Apolo é tido como o "resplendente" deus dos poderes configuradores que reina sobre a bela aparência do mundo interior e da fantasia. É uma divindade fundamentalmente ética que, ao lado da necessidade estética da beleza,  incita ao auto-conhecimento e à prudência, expressos através de suas célebres máximas "Conhece-te a ti mesmo" e "Nada em demasia". É o responsável pelo  metron, linha tênue que não deve ser ultrapassada pela fantasia a fim de evitar a confusão entre o mundo onírico e a realidade cotidiana. Já o impulso artístico dionisíaco dá vazão à exaltação e à desmedida que levam ao rompimento do princípio de individuação que Apolo cria e se empenha em defender. É vinculado à arte não-figurada da música (unbildlichen) que se manifesta através da embriaguez artística em que a subjetividade se esvanece em completo autoesquecimento. O músico dionisíaco, enquanto dor primordial e seu eco, propicia êxtase ao romper o restritivo princípio de individuação apolíneo e franquear o acesso ao substrato mais íntimo da natureza.
Mago
Waite Smith Tarot


Vejamos. Arthur Edward Waite, em seu The Pictorial Key of Tarot, aponta o Mago como apolíneo. Essa ideia coloca o Iniciado com prerrogativas próprias do Senhor da Luz, da Poesia, da Música e da inspiração das Musas, da lógica e do sonho


Louco
Thoth Crowley-Harris


Aleister Crowley, em seu Thoth Crowley-Harris, representa o Louco como Dioniso, aqui relacionado com a embriaguez, com a música, com o êxtase, com o diluir da identidade no Todo. Não pretendo me estender, aqui, sobre as relações entre os autores e sobre a interpretação de ambos - teremos outras oportunidades para isso - mas evidentemente, poderíamos buscar nos textos da Golden Dawn, em especial o Liber T, elementos de análise para ambas as atribuições. 
Essa oposição Mago/Louco é lugar-comum de interpretação. Aquele que sabe/aquele que busca, aquele que detém o conhecimento/aquele que possui todas as possibilidades.
Estamos, contudo, diante de uma imagem que possibilita ambas as possibilidades, devido a um único atributo - a taça - que nos remete a outra interpretação. Busquemos, portanto, referências imagéticas para a taça.


Michelangelo Caravaggio
Baco Adolescente


Observemos essa imagem. O jovem, recostado em um divã, estende uma taça ao observador, inserindo-o na cena - característica própria do Barroco. Frutas e folhas em diversos estados de maturação estão na cesta à frente e nos cabelos -negros e cacheados - do jovem. Com a mão direita, despe-se displicentemente, fitando o observador nos olhos. A imagem é um convite à entrega aos prazeres de Dioniso/Baco, como Senhor do Êxtase que é.
Referenciados pela ideia da taça representar o convite, voltemo-nos ao Mago.




Mago
Ancient Italian


Reparem que seu olhar é direcionado ao operador. Ele lhe estende a taça, seja em brinde, seja em partilha. Mas ele não está embriagado, e possivelmente não se pretende a tal; ele é Apolo, mas ele é Dioniso. Ele é a amálgama das possibilidades e características de ambos, numa dicotomia poética e iconográfica. Ele é êxtase consciente.
Como todo início e iniciador, ele inspira a aceleração cardíaca, o frio e as borboletas no estômago, mesmo que tenhamos nos preparado por meses, quiçá anos, para o evento que aponta. Nenhum preparo é suficiente para o novo, senão não estamos diante do novo, mas de um recomeço ou releitura da nossa experiência ou de outrem; o nervosismo é próprio e inerente ao novo. E o Mago é o novo. O Louco se lança, sem consciência e com confiança, no desconhecido; O Mago também, mas ele tem a si mesmo. O Desconhecido permeia ambos na descida ao Abismo, mas o Mago, ao menos, sabe quem é.
Só não sabe quem pode ser. 


Assim, dei-me por satisfeito no que concerne à taça; o simbolismo dionisíaco me satisfez, estando correlacionado ao estado apolíneo da carta. É um contraponto, é uma dicotomia, mas é algo compreensível e interpretável. O Mago é criativo, é inovador, é pleno; e ele lhe estende a taça, lhe convida, leitor, ao Desconhecido. 
Novamente, digo: ele sabe quem é. E você?




Post Scriptum: A Vera Chrystina postou um link que merece ser visto, de um texto que merece ser lido. Está em francês; espero que ainda assim vocês possam ter acesso ao conteúdo. O link é esse aqui.

2 comentários:

  1. Muito bem, mano. E o arcano 19, tão querido, é a prova de que Apolo e Baco dançam com os detalhes. Hoje são dois gêmeos, um casal até. Mas são os dois irmãos divinos e inseparáveis que iluminam, desde as raízes, Il Bagatto.

    Abbraccio,

    L.

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  2. Bravo Emanuel!
    O paralelo está extraordinário.
    Gostei desse novo deck.
    Sempre com novidades interessantes por aqui.
    Paz e bem.
    Rute

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