quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Blogagem Coletiva Petit Lenormand: 23. Julia Tourinho e os Ratos.


Conheci a Julia no evento Cartas Ciganas (inclusive, pessoal, o deste ano já tem data marcada: aguardemos um brilhante outubro!). Em sua apresentação, falou sobre a oitava carta do Lenormand, o Caixão. As vivências que tivemos ficaram tatuadas em mim. Desde então não perdemos mais contato e desenvolvemos uma forte e sólida amizade. Por isso, reitero: pessoal, façam um esforço para ir aos eventos. Conhecer tête-a-tête as pessoas com as quais dialogamos não tem preço. 
E hoje, no mesmo espírito que norteou a leitura do caixão que ela fez na Mesa Redonda, acompanharemos sua visão e prática com uma das mais complicadas e encardidas cartas do baralho. Ainda bem que estamos bem acompanhados.
Julia Tourinho por ela mesma:
Psicóloga e arteterapeuta. Sou uma eterna estudante e aprendiz, apaixonada por simbologia, mitologia e afins.

A minha escolha por falar sobre a carta do Rato, vem muito por tentar desmistificar as cartas que em um primeiro olhar são vistas como negativas ou ruins, pois creio que nada, nunca, é estritamente ruim. Assim como a carta 8 (caixão) que na maioria das vezes ‘assusta' por estar associada a morte e ruptura. A carta 23, traz o estigma de ser a carta mais negativa do baralho cigano. Assim como aprendi, o Rato na leitura significa: desgaste, perda de energia, de tempo ou de bens materiais. Roubo/furto. Cansaço, apego emocional. Prejuízos.
Nesse presente ensaio, tenho como objetivo amplificar a simbologia do Rato, para que não tenhamos tanto receio quando esta carta sair em nossos jogos. Isso não retirará dela suas características inerentes, nos dando uma amplitude de olhar e maior sabedoria na hora da leitura.


Uma grande diferença do baralho cigano frente a outros oráculos é a sua simbologia. Enquanto alguns têm uma simbologia bem complexa, dando margem a uma vasta rede de possibilidades de interpretação e leitura, as cartas ciganas têm uma simbologia simplificada, bastante clara e objetiva, sendo assim, extremamente efetivas. Não entendam simplificada por menos importante ou vazias, pelo contrário, elas tratam de símbolos universais, que falam diretamente ao indivíduo, podendo ser entendidas por qualquer povo, em qualquer tempo; o que é bem característico do povo cigano e sua personalidade nômade. A carta do baralho cigano sempre diz ao que veio, um observador atento, com um pouco de reflexão, faz a leitura do símbolo. Entretanto aquilo que poderia parecer uma desvantagem para o cartomante, não é, pois essa característica coloca em destaque as habilidades de uma boa leitura: intuição, sabedoria e o desejo constante de adquirir novos conhecimentos e aprendizados.
Sendo assim, reforço a importância de pesquisarmos os símbolos, buscando fontes diferenciadas e ampliando nossos conhecimentos, pois dessa forma nos tornaremos melhores cartomantes. Acreditando na universalidade simbólica, trarei para esse ensaio o significado do Rato no dicionário de símbolos, no xamanismo e na astrologia chinesa, com algumas pitadas de conceitos psicológicos.

Bebendo em outras fontes


Para o dicionário de símbolos (Chavalier, 2006), o rato é esfomeado, prolífico (aquele que se prolifera), e noturno. Está também relacionado a dinheiro e riquezas, principalmente no aspecto da avareza e cupidez (cobiça, ambição, ganância). O rato insaciável é visto como ladrão. 
Em alguns países como Japão, Sibéria e China o Rato é visto em sua interpretação valorizada, sob a tônica da fecundidade, da abundância e prosperidade.
A apresentação mais interessante sobre os Ratos é a ligação com o deus Apolo, na sua polaridade de trazer e curar doenças. "Vê-se que, na simbologia, o mesmo papel destruidor que os ratos possuem pode justificar duas aplicações diferentes: a utilização dessa sua característica para se obter uma vingança, ou a sua eliminação, para propiciar uma benfeitoria." (p.770)


Para as cartas Xamânicas (Sams, 2000), a curiosidade e a minuciosidade do Rato são tanto sua força quanto sua fraqueza, pois é "bom ver as coisas de perto e prestar atenção aos detalhes, mas é nefasto ruminar em excesso até reduzir tudo a pedaços." (p.129) Por vezes se perdendo em detalhes sem importância, obcecados por metodologias, classificando a tudo e a todos. Para o Rato há sempre como aprender mais, cavar mais fundo. 
Autopreservação é sua palavra de ordem (por ser um animal pequeno e ter muitos predadores), tendo um senso de perigo muito aguçado.

"Se a carta do Rato apareceu no seu jogo, isto significa que você precisa escrutinar cada detalhe dos outros e de si mesmo. Preste atenção, pois talvez aquele apetitoso pedaço de queijo que o está atraindo irresistivelmente pode esconder o mecanismo de uma ratoeira que irá esmagá-lo quando você tentar abocanhá-lo, ou talvez o Gato esteja emboscado, esperando para agarrá-lo. Isto pode ser sinal de que alguém a quem você delegou algum tipo de autoridade, [...] não está correspondendo às suas expectativas e poderá trair sua confiança. À mensagem é clara: veja aquilo que está ocorrendo diante dos seus olhos e tome as medidas necessárias para corrigir o que for preciso a tempo." (OP.CIT, p.130)


Para a astrologia chinesa, o Rato é o primeiro ano de todas as eras que seguem a se repetir. Segundo o livro 'Manual do horóscopo chinês' (Lau, 1979), os nascidos sobre esse signo são felizes e sociáveis. O fato de terem inúmeros amigos, pode deixar os outros em desvantagem, já que se portam sempre de forma bastante cândida. Em contra partida, por serem muito exigentes, podem se tornar exageradamente críticos ou rabugentos, descobridores de erros alheios. Com um olho fantástico para minúcias, possuem uma boa memória e são incrivelmente inquisitivos. "No aspecto negativo, o Rato adora bisbilhotar, criticar, comparar, fazer reparos e regatear - geralmente por questões sem importância." (p.35)
O Rato possui uma grande esperteza e um grande amor ao dinheiro. Um trabalhador esforçado e poupador, só será generoso com aqueles a quem ama muito. Apesar de serem sovinas na maior parte do tempo, as pessoas de Rato raramente tem essa característica com seus familiares. Seu maior obstáculo é a ambição exagerada. Costumam fazer coisas demais, cedo demais, dissipando assim suas energias. Aparentes 'bons negócios' são grandes armadilhas. "Compra coisas que realmente não precisa e as pechinchas sempre o atraem. Talvez isso se deva ao seu impulso acumulativo: recordações, lembranças e muito bagulho sentimental serão encontrados nos cantos do seu quarto e do seu coração." (p.35)
"O nativo de Rato guarda bem os seus segredos, mas no que concerne a confidências pode ser um especialista em jogar verde pra colher maduro. Tem poucos escrúpulos quanto a utilizar informações vitais que colheu ou capitalizar os erros alheios. Afinal de contas, com certeza você não espera que ele irá desperdiçar a oportunidade quando esta lhe bater a porta [...] Tem também inclinação para ser o intrometido da vizinhança, embora na maioria das vezes suas intenções sejam boas." (p.34-35)



Duas características fundamentais são a grande capacidade de adaptação e o senso de autopreservação. O Rato se adaptará a qualquer situação, pois é hábil em enfrentar as dificuldades. "Sensato e perspicaz, tem uma intuição aguçada, é previdente e está sempre ocupado em traçar planos [...] A autopreservação está colocada bem no alto da sua lista de prioridades e ele geralmente escolhe o caminho onde as possibilidades de efeitos colaterais sejam menores. Se você quiser sair rapidamente de uma encrenca, siga os passos do Rato. Ele tem um alarme embutido, um aparelho de defesa que raramente falha." (p.35)
Agora que visitamos três fontes diferentes sobre a simbologia do Rato, vamos ampliar um pouco essa temática em relação com a leitura das cartas.


Amplificações



Acredito que a maior contribuição que possa trazer para vocês com esse ensaio, seja o convite para refletirmos sobre a carta 23, além do que habitualmente associamos à ela, pois vejo as cartas ciganas (assim como qualquer oráculo) não apenas no seu sentido divinatório, mas primeiramente e principalmente como grande fonte de autoconhecimento. Meu objetivo aqui é amplificar, ampliar, refletir e trazer a tona os alertas, conselhos e significados que essa carta traz. Irei discorrer sobre algumas possibilidades de leitura e interpretação.
O Rato nos avisa para além das ameaças externas, nos diz também dos hábitos e condutas inadequados. Como por exemplo, pensando o seu papel destruidor – em que sua presença é a praga e a sua retirada é a cura – podemos refletir da seguinte forma: que atitudes destruidoras precisam ser excluídas de nosso cotidiano, em prol de uma melhoria ou transformação? Ou: quais comportamentos temos, que são verdadeiras pragas para nossas vidas?
O Rato também nos avisa da tendência de cavar cada vez mais fundo e roer tudo, levando a desgastes desnecessários. Dessa forma, nos alerta que é preciso perceber a diferença entre a curiosidade saudável e a fixação em detalhes excessivos. 
Nos alerta também para a perda de dinheiro, tanto por um possível furto ou roubo, quanto pela tendência sovina que podemos apresentar. Querendo guardar tudo ‘em baixo do colchão’ podemos estar perdendo a oportunidade de um bom investimento ou, no seu contrario, tentando ‘aproveitar’, podemos cair no erro daquele famoso ditado popular: “O barato que sai caro!”.
Essa tendência acumuladora não se refere apenas a bens materiais, mas também se aplica a emoções e sentimentos. O Rato vem nos chamar a atenção para o quanto podemos estar apegados emocionalmente a uma situação, guardando mágoas, ressentimentos, raivas, ciúmes entre outros sentimentos que nos ‘roem por dentro’ e acabam por nos trazer enormes prejuízos.
O grande senso de autopreservação do Rato pode estar nos alertando não apenas para algum perigo eminente, mas também para a necessidade de aguçarmos nossa intuição e principalmente, nossos instintos!
Às vezes nos dedicamos tanto a uma conquista, que nos esquecemos de checar se ela realmente nos levará a algum lugar (ou se é apenas um esforço vão). A carta 23 vem nos convocar à reflexão e percepção, de se tal feito que nos gera tanto esforço (e um possível cansaço) é apenas um gasto de energia desnecessário, ou se precisamos ter um pouco mais de perseverança e persistência para atingir os objetivos desejados.
O Rato por sua característica noturna, é uma das carta do baralho que melhor personifica os aspectos sombrios de nossa psique, ou seja, aquilo que desconhecemos de nós mesmos. Usarei um trecho da história contida no livro: O rato me contou... : a verdadeira história do horóscopo chinês. (Sellier, 2011) para exemplificar o que estou querendo dizer:

Eu vou contar a história 

dos doze animais do horóscopo chinês. 
Ela é verdadeira, eu sei, 
quem me contou foi o rato, 
que presenciou o fato. 
Eis o que o rato contou...
Um dia, 
no início do mundo, 
tanto tempo faz 
que ninguém se lembra mais, 
o Grande Imperador do Céu 
convidou todos os animais 
a irem visitá-lo sem falta: 
'Venham todos', disse ele, 
'ao topo da montanha de Jade. 
Cheguem antes do sol raiar!'.
'Antes do sol raiar! ', miou bocejando o gato.
'É cedo demais para mim!'
'Pode dormir sossegado', disse o rato,
'que eu te acordo e vamos juntos.'
É bom saber que então 
gato e rato eram amicíssimos.
Mas o maroto do rato
não acordou o amigo gato:
sem barulho saiu sozinho,
em meio às sombras da noite.
Quando ouviu passar o búfalo, 
que seguia com os outros
rumo à montanha de Jade,
entre os chifres do animal de um pulo se instalou.
O búfalo nem reparou, e foi lá que viajou
sem se cansar o ratinho.
'Sou o primeiro de todos', o búfalo se alegrou
ao ver que ia na frente a passo ligeiro.
Mas, quando chegou lá no alto da alta montanha de Jade,
de entre seus chifres saltou, aos pés do Grande Imperador,
de um pulo certeiro o rato:
'Majestade, estou aqui! Sou eu, o rato, o primeiro! '
O Grande Imperador do Céu sorriu:
'Gosto de você, ratinho da madrugada,
pois apesar de miúdo, é esperto e mateiro.
Dou a você o ano primeiro de todos os tempos'.
'Mil vezes obrigado, Majestade', guinchou o rato orgulhoso.
[...] O trono de ouro do Grande Imperador do Céu
pôs-se a brilhar em todo o seu esplendor
e o sol apareceu no firmamento.
Era a primeira manhã do mundo.
A terra começou a girar lentamente,
e os animais entraram todos, um atrás do outro, 
na grande roda celeste:
o rato, o búfalo, o tigre,
a lebre, o dragão, a serpente,
o cavalo, o carneiro, o macaco,
o galo, o cachorro e o porco.
Entraram na roda os doze
e nela continuam girando
até os dias de hoje.
E o gato?
O que aconteceu com ele?
Quando acordou,
viu logo que o rato tinha lhe passado a perna.
Por isso, desde esse dia,
os gatos e os ratos
nunca mais foram amigos.

Quem nunca quis enganar e ganhar o primeiro lugar? Quem nunca o fez? Quem nunca foi esperto e mateiro e agiu em seu favor? O Rato representa, e muito, os nossos aspectos negligenciados, por não serem socialmente aceitos. Aqueles que nos envergonham, que colocamos para baixo do tapete, que não admitimos existir em nós.
Do ponto de vista psicológico, o nosso lado sombrio é o núcleo de tudo aquilo que foi reprimido pela consciência, por ser considerado ‘feio’ ou inferior. A sombra é o centro do nosso inconsciente, abarca aquilo que ignoramos de nós mesmos, que negligenciamos ou nunca desenvolvemos em nós. Tudo que nos é desconhecido. Não é possível ‘controlar' os aspectos sombrios, pois na maioria das vezes, nem temos ideia de que os possuímos, nem sequer a consciência de que projetamos uma sombra. 
A sombra não é diretamente experimentada pela consciência. Sendo inconsciente, é projetada em outros. Quando uma pessoa se sente tremendamente irritada por outra que se manifesta ser realmente egoísta, por exemplo, essa reação é usualmente um sinal de que está sendo projetado um elemento inconsciente da sombra. Naturalmente, a outra pessoa tem que apresentar um ‘gancho' para essa projeção, sendo assim, existe sempre uma mistura entre percepção da característica do outro e projeção de características internas não reconhecidas. (STEIN, 2006)


Dessa forma, proponho que a leitura da carta 23 não seja direcionada a aspectos negativos ‘estritamente’ vindos de fora, mas também a aspectos negligenciados de nós mesmos, que acabam por nos trazer prejuízos. Conteúdos inconscientes que vêm a tona, tanto na figura de outras pessoas, quanto em situações em que nos metemos, ou em hábitos perniciosos para conosco mesmo que precisamos fazer contato. Talvez o que a carta do Rato também ‘aponte’ pistas sobre características destruidoras de nós mesmos que precisamos conhecer, integrar, aceitar e conviver. 


Referências

BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1996.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
FADIMAN, James. Teorias da personalidade / James Fadiman, Robert Frager. São Paulo: Harbra, 1986.
LAU, Theodora. Manual do horóscopo chinês. São Paulo: Pensamento, 1979.
SAMS, Jamie. Cartas xamânicas: a descoberta do poder através da energia dos animais.  Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SELLIER, Marie. O rato me contou... : a verdadeira história do horóscopo chinês. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011.
STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.

3 comentários:

  1. Ótimo texto e a viagem na simbologia. O mais importante, não o colocou como sendo o "bonzinho" da questão e sim realmente analisar em todos os aspectos o quanto determinado comportamento significa algo bom ou algo de ruim.

    Parabéns mesmo!!!

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  2. Amei o texto! Adoro essa coisa de incluir outras simbologias para a interpretação. Sem contar que nasci no ano do Rato. Então essa foi uma leitura altamente esclarecedora em muitos sentidos... Agradecida!

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