terça-feira, 23 de agosto de 2011

Conversas Cartomânticas: Ricardo Pereira e o Julgamento


Olá pessoal. Conforme prometido em uma postagem anterior, cá está o texto do Ricardo Pereira. É impressionante a precisão desse tarólogo em descrever os significados dos Arcanos. É quase cirúrgico! Eu fico muito feliz com a escolha do Ricardo, pois, justamente pelas correlações feitas a esse Arcano no século XX (duplamente, XX), seus significados se diluíram em achismos que se refletem nas diversas disciplinas associadas a posteriori ao baralho. E disso decorrem as diversas nomenclaturas desse Arcano, as diversas iconografias, as diversas possibilidades, no limite, escatológicas, relacionadas a ele.
Deleitemo-nos, portanto, com esse texto claro e - por que não? - dolorosamente delicioso de ler. Difícil ver essa lâmina com espaço para achismos depois deste texto...
Ricardo Pereira por ele mesmo: 
Ricardo Pereira é cearense, de Aracati, residindo em Fortaleza há 31 anos. É historiador de formação universitária pela Universidade Vale do Acaraú - UVA, com pós-graduação, pela Universidade Federal do Ceará – UFC, em administração de empresas e recursos humanos, atuando profissionalmente como consultor empresarial, tendo voltado aos bancos acadêmicos cursando administração de empresas pela Estácio de Sá e Faculdades Integradas do Ceará. A sua atuação como tarólogo começa em 1984, estudando, pesquisando e praticando o tarô em suas diferentes abordagens, com foco especial na abordagem clássica, ensinando aos seus alunos e atendendo aos seus consulentes sob essa perspectiva. Criou em 21 de fevereiro de 2009 o blog Substractum Tarot, com uma abordagem ampla, histórica, filosófica e prática de pesquisa, estudo e divulgação do tarô e da arte taromântica. Em seu blog, além de escrever os mais variados artigos sobre o tema, oferta cursos e faz atendimentos por MSN ou Skype. Possui vários artigos publicados no Clube do Tarô e nesse site é responsável pelo Fórum de Discussão “Analogias e cotidiano”.

O autoexame em O Julgamento


O arcano maior de número 20, em sua simbologia clássica, sempre expressa um chamado, o qual é simbolizado pelo toque da corneta do anjo. Trata-se de um alerta para algo que, em alguém, necessita de atenção, de urgente mudança e, consequentemente, de redenção.
Geralmente, tal chamado possui o fim de um autoexame, o qual conduzirá uma pessoa, se assim ela se permitir e investir nisso, à melhoria e à realização, as quais somente serão conseguidas a partir de uma espécie de balanço e de uma reformulação, obrigatoriamente, das velhas formas de pensamento, de padrões e atitudes autodepreciativos e, sobretudo, de antigas crenças muitas vezes repressoras e opressoras. 
Desse modo, esse arcano maior deve ser entendido, portanto, como um arcano de mudanças consequentes de um novo despertar, o qual leva, muitas vezes, a um renascimento sob novos prismas ou sob diferentes olhares para o mundo, proporcionando, àquele que estiver atento aos seus prognósticos e as suas orientações, novas perspectivas pessoais, pois esse arcano maior traz consigo amplas possibilidades, após um processo profundo de autoexame, de autoperdão e não só de perdão de si mesmo, mas, sobretudo de perdão de outros. 
É, nesse sentido, a nova consciência que desperta, simbolizada pelos personagens que emergem ou despertam dos túmulos do inconsciente, e lança, sobre àquele que procura o tarô, um novo começo, diferente no entanto, porque é baseado no passado ou em experiências anteriores, com um forte sentido de uma libertação proporcionada a partir da reflexão sobre pensamentos, ideias projetadas, palavras proferidas e atos cometidos. 
Vale salientar, que a prática do autoexame não é uma espécie de mandamento exclusivamente cristão. Sempre foi tal exercício um preceito aplicado no oráculo grego e executado com maestria pelo herói da razão, Sócrates. 

Nesse contexto, observa-se que, entre os gregos e romanos, assentou-se o ideal do sábio como aquele que realiza plenamente o “conhece-te a ti mesmo” e o “cuidado de si” e tal condição pode ser bem observada em uma passagem de um dos grandes pensadores da Antiguidade clássica, Sêneca (Corduba, 4 a.C. — Roma, 65 d.C.), quando ele afirma que o que distingue o bicho homem dos deuses e dos outros animais "[...] é que o homem é aquele que tem de cuidar de si para realizar aquilo que ele mesmo é". (SÊNECA, 2000). 
É tão somente, do ponto de vista do Tarô, durante o processo de autoexame, efetivamente pronunciado pelo arcano maior O Julgamento, que o ser humano desperta para a necessidade  de um cuidado pessoal mais profundo, de si mesmo com base, evidentemente, em seu exame do seu próprio, e tão somente seu, cabedal de comportamentos e atitudes, bons ou maus, empreendidos anteriormente. 
Nesse âmbito, Marteu (1991), dá a esse arcano maior um sentido elementar, destacando que ele denota "[...] o homem despertado do sono da matéria por sua parte divina, que o obriga a examinar sua alma em sua nudez, e a julgá-la".
Interessante, que em sua obra, escrita por volta de 50 a. C., intitulada  "Da vida feliz", Sêneca faz todo um autoexame, digno do arcano maior O Julgamento, a partir de seus olhares para a vida, para os outros, para sua alma ou para si mesmo, vejam:

"Como trataremos da vida feliz, não me poderás responder estupidamente aquilo que costumam dizer: 'É desse lado que parece estar a maioria'. Ora, por isso mesmo é pior. Nas coisas humanas não se procede com acerto tentando agradar à maioria, pois a multidão é a prova do que é pior. Busquemos, portanto, o que é melhor e não o que é mais comum, aquilo que nos estabelece na posse de uma felicidade eterna e não o que é aprovado pela massa, o pior intérprete da verdade. Designo com o nome de 'vulgo' tanto as personagens vestidas de clâmide como os coroados, pois não considero a cor da indumentária que reveste os corpos; não dou crédito aos olhos, quando julgo a respeito dos homens; tenho um critério mais seguro para discernir o falso do verdadeiro: é a alma que deve encontrar o seu próprio bem. Quando ela, algum dia, tiver tempo de respirar e entrar dentro de si, ah, reconhecerá que se afligiu e ver-se-á obrigada a confessar a verdade e dizer: 'Eu gostaria de não ter feito tudo o que fiz; ao lembrar-me de tudo o que disse invejo os mudos; tudo o que desejei reputo como sendo maldição dos meus inimigos, tudo o que temi, ó deuses bem-aventurados!, foi muito mais suave do que aquilo que ambicionei! Tive inimizade com muitos e depois de odiá-los tornei a ser amigo deles (se é que pode haver alguma amizade entre maus): no entanto ainda não sou amigo de mim mesmo.
Empreguei todos os esforços para distinguir-me da multidão e fazer-me notável por meio de uma qualidade especial. Ora, não fiz mais do que me tornar alvo de projéteis e expor-me às mordeduras da malevolência. Vês todos esses que louvam a eloquência, buscam as riquezas, granjeiam o crédito por meio da adulação e enaltecem o poder? Todos eles ou são inimigos ou podem sê-lo, o que equivale ao mesmo. No povo, o número dos admiradores é igual ao dos invejosos. Por que não procuro algum bem que a experiência me mostre ser útil, mas aquele que só serve para a ostentação? As coisas que provocam nossa admiração e nos fazem parar diante delas brilham por fora, mas por dentro são mesquinhas'
Busquemos um bem que não seja aparente, mas sólido e constante, e seja tanto mais belo quanto mais íntimo. [...] De resto, conforme pensam todos os estóicos, em comum consenso, concordo com a natureza. A sabedoria consiste em não se desviar dela e em se regular segundo suas leis e exemplos."
Dessa forma, tal autoexame em Sêneca, faz-nos compreender que somente a partir da profunda percepção de si mesmo, de suas falhas e qualidades, em sentido amplo, daquilo que fez ou deixou de fazer, é que o homem ou a mulher passa à realização daquilo que eles são em essência, etapa de vida, essa, que culminará, a partir da penetração na profundeza de si, das coisas, do aprendizado, a fim de incidir na implementação de mudanças, no êxtase do verdadeiro autoconhecimento e da felicidade prenunciados pelo arcano maior seguinte, O Mundo.
Assim, vê-se nesse arcano maior O Julgamento, o sugerir da existência de débitos e também das quitações, aspectos esses marcados pelas atitudes pessoais que suscitam não só uma retomada para correção de comportamentos e de rumos, mas, também, para o pagamento das dívidas contraídas, outrora, para com o outro ou consigo mesmo. 
Por outro lado, esse arcano traz à visão e à consciência de que o autoexame nada mais é que o nosso poder pessoal de acompanhar e monitorar os nossos próprios impulsos e desejos, permitindo, também, o aprendizado da distinção entre o que é, de fato, real ou fruto de nossa ilusão, resquício, em nossa trajetória rumo ao autoconhecimento, de nossas vivências nos arcanos maiores O Diabo e A Lua; por isso, no autoexame, a incidência de dificuldades iniciais de tomada de decisão e de execução das mudanças necessárias.
De fato, a experiência de um arcano maior O Julgamento, proporciona, aos que estão em alerta, a possibilidade de transformar limitações e problemas pessoais em lições aprendidas e, também, em oportunidades muita vezes, únicas.
Desse modo, ouvir a voz interior (a trombeta, um dos importantes símbolos do arcano) clamando por alguma renovação importante é o fundamental aconselhamento ou orientação desse arcano maior. 
Vale enfatizar, que nesse arcano maior o único julgamento existente é o que o consulente faz de si mesmo, e nenhum outro. É exatamente por esse motivo, que aspectos cármicos (isso para quem acredita na manifestação dessa Lei espiritual) influenciam nas realizações, nas transformações e nos resultados que envolvem e estão previstos, pela emergência desse arcano maior, para quem consulta o tarô.
Nesse sentido, e já não é por menos, não se pode deixar de fazer agora ou deixar para amanhã a mudança urgente suscitada pelo lampejar e pelo momento fortuito de uma nova consciência e da própria redenção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARTEU, Paul. O tarô de Marselha: tradição e simbolismo. São Paulo: Objetiva, 1991.
SÊNECA. Da vida feliz. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Ricardo Pereira - © Copyright 2011 - Todos os direitos reservados.
Contato com o autor, Ricardo Pereira: http://www.substractumtarot.com


Um comentário:

Quando um monólogo se torna diálogo...