Olá pessoal. Encerrando a trilogia de postagens sobre o filme Cisne Negro, façamos uma comparação entre a estética do filme e a pintura de Matthias Grünewald, Crucificação.
Cisne Negro é permeado por diversas cenas do cotidiano, de dores que somos capazes de compreender. Nem todos nós somos capazes de alcançar a dimensão proposta por Natalie Portman ao afirmar que sapatilhas de ponteira são aparelhos de tortura; mas qualquer um de nós sabe o quanto um arranhão, uma cutícula arrancada, um corte de unha exagerado, um apertão de mão, é capaz de doer. Mesmo.
E é aqui que esse filme, a meu ver, supera as expectativas. As dores de Nina crescem à medida que o filme se desenrola e sua neurose se torna mais aparente. Pequenos sinais apontam para o desfecho, mas são tão sutis que dependemos de tempo para entender. Para que, no clímax, entendamos o que a protagonista sentiu, precisamos de pequenos detalhes esparsos que, somados, concedem-nos a incômoda sensação de sinestesia com tamanha dor. Tal como a tela de Grünewald.
Este óleo sobre madeira pintado entre 1512 e 1516 é, para mim, uma das pinturas mais cheias de pathos de todos os tempos. Na verdade, ela exala pathos.
A experiência da crucificação é praticamente nula para nós. Não é possível imaginar o contexto no qual ela ocorreu, por dois motivos: em primeiro lugar, pela distância temporal entre a condenação e a nossa visão de castigo (creio que uma pessoa ficaria horrorizada se visse uma imagem de alguém na cadeira elétrica; teria muito mais ojeriza do que por uma imagem de um crucificado). E em segundo lugar, a imagem da crucificação tornou-se, desde o século XIV, aproximadamente, passível de ser representada nas igrejas como exemplo de prova de amor. O contexto da imagem modificou o sentido atribuído a ela.
E assim, quando uma obra como Paixão de Cristo surge, é tido como de mal gosto, exagerada, non sense. A falta de contexto é tanta que as pessoas se sentem bem vendo tamanho sofrimento. Quer sofrimento? Vá assistir Jogos Mortais que é mais intenso (e de gosto bem mais duvidoso...)!
Achou o comentário de mau gosto? Pense bem: se não fosse o Cristo, conforme te ensinaram na igreja, você aguentaria ver esse filme, com a intensidade que possui?
Bem, mas voltando a Crucificação de Grünewald...
A cena como um todo, já nos é familiar, pelas diversas reproduções do texto bíblico que conhecemos. Mas atenha-se aos detalhes. Em primeiro lugar, o corpo do Cristo:
Em segundo lugar, seus pés:
Repare que as expressões são fortes. O mais interessante, quando passa o mal-estar próprio de ver tal cenas, é que elas, isoladamente, são possíveis em nossa experiência diária. Uma ferpa no dedo, um chute na quina da mesa com o dedinho do pé... Dores intensas e isoladas que são somadas num pathos difícil de conceber. Mas plausível dada a violência desse método de execução e tortura. E aí temos a sinestesia deveras incômoda de entender o que se passou. Terrível.
E onde isso se aplica ao filme Black Swan?
As pequenas sensações de Nina são sempre marcadas por sangue. Não litros, mas gotas. As mesmas gotas que você deixa na manicure quando a mão dela está pesada. Ou quando você se surpreende mordendo o lábio com mais força que deveria. Ou ainda, com um escapulir da faca que você cortava uma maçã ao meio. Talvez o escapulir de uma agulha do seu bordado...
Unhas. As unhas de Nina são delicadas como cabe a uma mulher tão frágil. Contudo, o efeito causado por elas não tem nada de sutil. Veja o quadro novamente. Olhe as ferpas no tórax. Agora lembre-se da coceira da Nina. Parece familiar?
Contudo, a coceira de Nina tem muito de nascimento. O incômodo epitelial se mostra coeso com o clímax, quando as penas nascem (atenha-se a sombra na parede). As penas são metáforas dos aspectos sombrios emergentes e incômodos. Tem que haver espaço para sair. Como a emergência dos primeiros dentes, ou dos primeiros pêlos, tão incômoda quanto, a Sombra rasga o espaço tênue entre o intra e o extra sensorial da personagem.
Mas, para que nós, expectadores, possamos entender, é necessário sentir com a personagem sua dor sadomasoquista com requintes de crueldade em eventos aparentemente sem conexão, mas sempre permeados por gotas de sangue. Assim como na estética proposta por Grünewald para a Crucificação, só entendemos a dor de Nina por partilharmos em algum aspecto dos eventos que ela vivencia, dos quais temos conhecimento e memória. Já disse, antes, não entender de ballet; mas já me cortei com minhas próprias unhas em momentos de tensão e sei que isso não é nada bom.
Abraços a todos.
A experiência da crucificação é praticamente nula para nós. Não é possível imaginar o contexto no qual ela ocorreu, por dois motivos: em primeiro lugar, pela distância temporal entre a condenação e a nossa visão de castigo (creio que uma pessoa ficaria horrorizada se visse uma imagem de alguém na cadeira elétrica; teria muito mais ojeriza do que por uma imagem de um crucificado). E em segundo lugar, a imagem da crucificação tornou-se, desde o século XIV, aproximadamente, passível de ser representada nas igrejas como exemplo de prova de amor. O contexto da imagem modificou o sentido atribuído a ela.
E assim, quando uma obra como Paixão de Cristo surge, é tido como de mal gosto, exagerada, non sense. A falta de contexto é tanta que as pessoas se sentem bem vendo tamanho sofrimento. Quer sofrimento? Vá assistir Jogos Mortais que é mais intenso (e de gosto bem mais duvidoso...)!
Achou o comentário de mau gosto? Pense bem: se não fosse o Cristo, conforme te ensinaram na igreja, você aguentaria ver esse filme, com a intensidade que possui?
Bem, mas voltando a Crucificação de Grünewald...
A cena como um todo, já nos é familiar, pelas diversas reproduções do texto bíblico que conhecemos. Mas atenha-se aos detalhes. Em primeiro lugar, o corpo do Cristo:
Em segundo lugar, seus pés:
Repare que as expressões são fortes. O mais interessante, quando passa o mal-estar próprio de ver tal cenas, é que elas, isoladamente, são possíveis em nossa experiência diária. Uma ferpa no dedo, um chute na quina da mesa com o dedinho do pé... Dores intensas e isoladas que são somadas num pathos difícil de conceber. Mas plausível dada a violência desse método de execução e tortura. E aí temos a sinestesia deveras incômoda de entender o que se passou. Terrível.
E onde isso se aplica ao filme Black Swan?
As pequenas sensações de Nina são sempre marcadas por sangue. Não litros, mas gotas. As mesmas gotas que você deixa na manicure quando a mão dela está pesada. Ou quando você se surpreende mordendo o lábio com mais força que deveria. Ou ainda, com um escapulir da faca que você cortava uma maçã ao meio. Talvez o escapulir de uma agulha do seu bordado...
Nove de Espadas. Sangue, suor e lágrimas, escorrendo de lâminas tão gastas pelo uso que cabe-nos pensar se ainda possuem sua função original.
Unhas. As unhas de Nina são delicadas como cabe a uma mulher tão frágil. Contudo, o efeito causado por elas não tem nada de sutil. Veja o quadro novamente. Olhe as ferpas no tórax. Agora lembre-se da coceira da Nina. Parece familiar?
Contudo, a coceira de Nina tem muito de nascimento. O incômodo epitelial se mostra coeso com o clímax, quando as penas nascem (atenha-se a sombra na parede). As penas são metáforas dos aspectos sombrios emergentes e incômodos. Tem que haver espaço para sair. Como a emergência dos primeiros dentes, ou dos primeiros pêlos, tão incômoda quanto, a Sombra rasga o espaço tênue entre o intra e o extra sensorial da personagem.
Mas, para que nós, expectadores, possamos entender, é necessário sentir com a personagem sua dor sadomasoquista com requintes de crueldade em eventos aparentemente sem conexão, mas sempre permeados por gotas de sangue. Assim como na estética proposta por Grünewald para a Crucificação, só entendemos a dor de Nina por partilharmos em algum aspecto dos eventos que ela vivencia, dos quais temos conhecimento e memória. Já disse, antes, não entender de ballet; mas já me cortei com minhas próprias unhas em momentos de tensão e sei que isso não é nada bom.
Abraços a todos.
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