domingo, 26 de fevereiro de 2012

Quando a Sombra se faz presente. Ou: A Carta Testemunha, só que ao contrário.

Sombras na parede, e parece-nos serem animais...

Espadas. Esse naipe, que possui a foice de Chronos e a espada de Ares em seus aspectos mitológicos e astrológicos, me assusta(va!) um bocado. O Grande e o Pequeno Maléficos, juntos? Perae. Deixa eu tomar uma talagada de coragem, primeiro. Claro que é só um naipe, como os outros três que compõem o quarteto. Mas, da mesma forma como Copas é desejado, Espadas é execrado. Herança de uma cartomancia onde o preto se opunha ao vermelho como o mal ao bem. Maniqueísmos à parte, sobraram alguns preconceitos que, perpetrados pela literatura, afastam esse naipe da minha lista de desejos. O que, por outro lado, não deixa de ter um pouquinho de razão. Onde há fumaça, há fogo – mesmo que a origem do fogo seja outra além da que supúnhamos quando víamos a nuvem de fumo.


Por esses tempos, ainda, estava eu a ler O Lado Sombrio dos Buscadores da Luz (Cultrix). Esse livro é bem bacana. Juro (como se precisasse jurar) que mais de uma vez fechei o livro por falta de coragem para continuar. Cadê meu copo com minha talagada de coragem, mesmo?
A autora, Debbie Ford, fala-nos do processo de integração da Sombra. Conforme a Wikipedia
Sombra, em psicologia analítica, refere-se ao arquétipo que é o nosso ego mais sombrio. É, por assim dizer, a parte animalesca da personalidade humana. Para Carl Gustav Jung, esse arquétipo foi herdado das formas inferiores de vida através da longa evolução que levou ao ser humano. A sombra contém todas aquelas atividades e desejos que podem ser considerados imorais e violentos, aqueles que a sociedade, e até nós mesmos, não podemos aceitar. Ela nos leva a nos comportarmos de uma forma que normalmente não nos permitiríamos. E, quando isso ocorre, geralmente insistimos em afirmar que fomos acometidos por algo que estava além do nosso controle. Esse "algo" é a sombra, a parte primitiva da natureza do homem. Mas a sombra exerce também um outro papel, possui um aspecto positivo, uma vez que é responsável pela espontaneidade, pela criatividade, pelo insight e pela emoção profunda, características necessárias ao pleno desenvolvimento humano. Devemos tornar a nossa sombra mais clara possível.Procurando um trabalho partindo do interior para o exterior. A sombra é freqüentemente projetada em outra pessoa, que aparece ao indivíduo como negativa.

Ler esse livro é um desafio. Você acredita mesmo que se conhece e, pior, você é tão bondoso, honesto, justo, honrado, verdadeiro e equânime quanto se julga ser? Baseado em que embasa essa resposta?

A manifestação dos seus sonhos começa com a difícil tarefa de descobrir o que eles verdadeiramente são. Enquanto somos crianças, seguimos as pegadas de nossos pais e professores. Aceitamos sua orientação e seu discernimento para nos guiar nas tarefas escolares; eles influenciam nossa escolha com relação a esportes, passatempos e outras atividades que ocupam nosso tempo livre. Quando ficamos adultos, escolhemos a carreira e os colegas baseados nos ideais estabelecidos pelos mais velhos.

Mas em que ponto paramos de ouvir essas vozes externas e entramos em sintonia com nossos guias interiores? Em que momento decidimos que talvez o caminho que estamos trilhando não seja, de fato, o nosso?

Seria essa a razão que nos leva a sentir que falta algo na nossa vida?

Esse é o tipo de pergunta que mais tememos, porque exige de nós uma segunda avaliação do que temos pensado até agora. Alguma vez você já questionou sua crença em Deus? Para alguns, questionar a doutrina sagrada é um pecado mortal; mas, se não desafiarmos nossas crenças mais básicas, não cresceremos espiritualmente. Nossa vida correrá simplesmente ao longo das linhas estabelecidas pelos nossos pais, e não passaremos jamais dos limites que eles estabeleceram para nós quando éramos crianças.
Debbie Ford

Ok. Enquanto lia, o Leo Chioda postou um texto instigante, causador de reflexões por noites a fio. Lá fui eu caçar minha Nemesis, e, por contraponto inevitável, visitar minha Temis. A Giane Portal fez um comentário nessa postagem, que foi mais que incentivador: “Emanuel, no universo binário em que vivemos, quanto maior a Luz, maior a Sombra. É fato.” Bora atrás da Sombra, então. Por contraponto ao tamanho da Sombra, é inevitável encontrar a Luz que a projeta – assim como o corpo que lhe dá forma.
Já estava complicado, mas poderia complicar mais. Claro. O Pablo de Assis nos diz: 
O complicado é percebermos a Sombra. Como toda boa sombra, ela sempre fica atrás de nós (se estamos olhando para a fonte de Luz) e dificilmente vemos ela chegando. Também, se está escuro, não vemos a sombra. E geralmente só percebemos a Sombra porque ela está projetada em algo.

Projeção aqui é o conceito chave pra compreender tudo isso. Basicamente, tudo o que nos é inconsciente (e a Sombra se inclui nisso, por motívos óbvios) só nos é percebido quando é projetado. E o que isso quer dizer? Basicamente que quando eu olho para algo e eu reconheço que isso é diferente de mim, eu estou projetando nela a minha sombra; principalmente se além de reconhecer a diferença eu coloco repulsa ou algo que me separe ainda mais disso.

Como a Sombra reune tudo o que reconheço (inconscientemente, a princípio) como sendo não-Eu, basicamente tudo o que vejo como não-eu no mundo se torna projeção da minha sombra. Em outras palavras, quando eu vejo isso, eu estou vendo no outro o que reconheço como sendo não-eu em mim mesmo.

O mecanismo pode parecer um pouco complicado, mas basicamente funciona assim: como não reconheço determinada característica em mim, então eu reprimo isso, que fica inconsciente. Mas isso não fica esquecido, mas sim jogado no mundo, no outro, que é visto como portando isso que não reconheço em mim, que é minha sombra. Eu posso conscientizar isso, mas não internalizo como sendo eu.
E é aí que o livro da Debbie Ford vai no osso da questão e no meio do músculo cardíaco do leitor. Nós somos absolutamente tudo em potencial. Não manifestamos tudo, mas somos. Somos potencialmente assassinos, ladrões, estupradores, dependentes químicos, mentirosos, traidores, maledicentes, fofoqueiros, racistas, misógenos, e por aí vai. Completa a lista com o que você execra, lembrando que o que você execra, você também é. Em potencial, mas é.
E desse cruzamento do que é a Sombra com o que é a Sombra na Cartomancia, lá fui eu caçar minhas cartas. Eu gosto de todos os Cavaleiros, poderia escolher um como Testemunha, mas não. Conforme disse o Leo, poderia escolher qualquer carta que representasse aquilo que de fato eu considerasse precioso. Dentro desse panorama, não poderia ser outra senão a Rainha de Paus.

Rainha de Paus
Marseille Grimauld

A Rainha de Paus é fidelidade a si mesmo. Sempre. Ela está para além dos ditames sociais – esses ficam lá em Espadas, por conveniência, sem trocadilho. A Rainha de Paus gosta, e porque gosta, gosta e só. O inverso é verdadeiro: ela não gosta, e, por não gostar, não gosta. Ponto. É uma figura que não só sabe fazer escolhas, como tem certeza de estar no caminho certo. O calor representado pela união do Fogo do naipe à estirpe úmida e fria de sua Realeza dá-lhe uma calidez que não é inocente ou pueril. Ela é arco-íris e relâmpago, como diz Veet Pramad.

Valete de Espadas
Marseille Grimauld

Ok. E qual seria a carta Sombra, senão o famigerado Pajem de Espadas? Não vou negar não. Êta carta encardida. Oposta ipisis litteris à Rainha – se esta é Fogo e Água, o Pajem é Ar e Terra. O calor após uma inesperada chuva de verão, aquele cheiro cálido de ar lavado e aromatizado com a terra úmida dá lugar à poluição de um dia seco. Poeira. Sufocamento. Dor de cabeça e sangramento nasal. Já falamos bastante dessa carta por aqui... Dá uma olhada aqui e aqui, em especial.

A maledicência do Valete de Espadas, a maior parte das vezes,
oculta um profundo sentimento de inadequação e um desejo de
ser aceito. Fofoca é confundida com intimidade, intriga com partilha,
ofensa aos outros com afirmação da própria natureza,
 grosseria e parcialidade com sinceridade.
Compaixão para gente assim. É só o que dá para ter.

Mas, perae, de novo. Evidentemente, eu sou tendencioso na interpretação da Rainha de Paus, porque realmente amo a ideia passada pela interpretação dessa carta à luz da personagem Penélope, no Tarô Mitológico. Por que eu não seria também tendencioso na minha relação com o Valete de Espadas? Não existem maniqueísmos no Tarô. Maniqueísmos são desenvolvidos por pessoas, não por cartas - embora quem manipule as cartas sejam pessoas. Curiosamente, nesse mesmo baralho, o Valete de Espadas é a única carta da Corte que não é representada por um herói, mas sim por um deus - Zephiro. E esse nome, aqui no Brasil, é um catecismo. Mas não daqueles que se apreende na igreja aos domingos.
Se eu descobri a Sombra, descobri também que naipe de experiências ela estaria atraindo para mim. Resta-me descobrir que tesouro ela reserva. Nesse caso, o que de positivo e luminoso existe no Valete de Espadas. Foram dias a fio pensando nessa carta, vivendo seus aspectos naturais (e desagradáveis). Eu não gostava dele, não sem motivo. Mas, superando sua característica primeva, primitiva, primordial e essencial, sobra-nos características muito belas para viver. A lição dele é chatinha, mas necessária.
Se essa carta fosse um conto, seria William Wilson. Poe. Will I am will son. Isso já me afastaria quilômetros dela. Autocrítica é uma característica a ser desenvolvida, não imposta por outrem (ainda que esse outro seja um duplo seu) - porque senão, não seria autocrítica, mas crítica embrulhada em uma transferência emocional louca. Pensando mais um pouco, há algo de Cisne Negro aqui também (confira a trilogia Caleidoscópio Cartomântico aqui: parte 1, parte 2, parte 3).
Mas não só. Há outro capaz de vestir a máscara do Valete de Espadas, também. E esse eu admiro sobremaneira.


Parece estranho, mas é fato. A habilidade que ele possui em escarafunchar os mais diferentes casos de uma forma absurdamente lógica passa por uma característica única nessa carta da Corte: critério. O Valete de Espadas é o mais criterioso entre as cartas da Corte. Suas intenções podem não ser das melhores (e raramente são), mas seu método é louvável. Ele junta pontos, soma ideias, imagens, informações, correlaciona tudo e... o resultado é idêntico ao seu caráter. Se essa carta se manifestar de forma bela, belo é o resultado e a chegada de suas informações. Caso contrário, temos um Kingslayer a postos para liberar seu veneno e chicotear com sua língua.
Pensando bem, nem sempre o resultado é idêntico ao caráter do Valete. Por vezes, o que menos importa é o seu caráter, e sim o que ele faz. O nosso Holmes contemporâneo que o diga.

O caráter do Dr. House não é lá aquelas coisas. Ele tem uma série de limites nesse sentido. Um misantropo cuidando dos mesmos seres que repele por opção. Um anti-herói por natureza que, por essa mesma natureza, é capaz de atos heroicos. Não há o que questionar quanto aos resultados. A questão são os métodos. Mas que ele é brilhante, ele é.

Não foi fácil chegar a essa conclusão sobre a luminosidade do Valete de Espadas. Aceitar que eu tenho potencial para realizar qualquer coisa que eu execre, também não. Mas quem disse que é fácil caçar aspectos encardidos em nós mesmos e entendê-los? A Sombra só é bela quando ela é compreendida, aceita e integrada plenamente. Hoje eu entendo que todas as características que eu não admiro no Valete também estão em mim, mas eu opto por não manifestá-las. Eu escolho por isso. 
Acho que, se eu não gostava dele, não era por ele, per se; era só pelo que ele é capaz de fazer. Ms existe uma forma muito fácil de resolver o problema com o Valete de Espadas. Quando ele se mostra vítima, quando ele se mostra interessado em dizer o que andam dizendo por aí, quando ele fala mal de alguém, conhecido ou desconhecido para você... Use as três peneiras. E siga sua vida. 


Abraços a todos, integremos nossas Sombras e cacemos novos desafios. O inferno somos nós... O Paraíso também.

P.S.: Para aqueles que desejarem ir à fundo nessa ideia, sugiro veementemente que leiam o livro da Debbie Ford, O lado sombrio dos buscadores da luz (Cultrix). Há um outro, que ainda não li, chamado O Efeito Sombra, escrito pela Debbie Ford, Deepak Chopra e Marianne Williamson. Aqui embaixo segue o trailer.




Ah, em tempo: segue aqui um teste organizado pela VEJA para reconhecer alguns aspectos da Sombra. Não é um fim em si, é um começo. E o Ricardo Pereira produziu para o Clube do Tarô um texto precioso sobre a relação das cartas invertidas com os aspectos sombrios dos Arcanos, aqui.

7 comentários:

  1. refletindo...pensando no lado sombra...rs
    Parabéns pelo lindo texto.
    bjos

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  2. Pois é! Os números kármicos têm tudo a ver com o lado sombra. «Nós somos absolutamente tudo em potencial. Não manifestamos tudo, mas somos.»

    É deveras importante conhecer nosso lado sombra para nos podermos assumir inteiros, dominando o lado lunar com sabedoria.
    Que bom que você aceitou o convite BCAP.
    Abraços.
    Rute
    P.s.-Tenho uma novidade: estou cursando Tarô terapeutico desde 31 Jan (curso presencial cá em Portugal).

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    1. Rute, que bacana! Temos muito, muito o que conversar! Que o curso lhe seja tão precioso quando a numerologia! Um beijo!

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    2. Manu, seu melhor texto ever!!!!! Como geminiana, o debate sobre a Sombra foi algo que sempre me atraiu e agradou muito, pois não acredito em dicotomias absolutas, mas sim na complementaridade dos opostos. Enfim, esse texto agrega muito à questão e, se não esclarece o questionamento em si, ao menos leva à reflexão séria e fundamentada do assunto.
      Parabéns, e que a Força - em ambos os aspetos - nos proteja! :)

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  3. "A Sombra só é bela quando ela é compreendida, aceita e integrada plenamente."

    Emanuel,
    só a dualidade latente em cada um traz o equilíbrio ao ser. Sem o lado sombra como conheceríamos nosso lado luz? E vice-versa...

    Ousar se conhecer!

    Conhecer cada face, sem deixar uma eliminar a outra, e creio ser importante sabermos que lado domina nossas intenções e expressões: o que manifestamos interna e externamente.

    Assunto instigante que aprecio muito! Parabéns pelo post!

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  4. Caro Emanuel,

    texto muito, muito, muito bom! Estou agora pensando numa definição nova que o psicólogo e poeta Rolando Toro Araneda criou em relação aos instintos. Ele afirmava que o humano devia acordar a poética dos instintos, assumir esses instintos que a nossa sociedade tem vindo a reprimir de há milénios para cá.

    Muitos, muitos abraços!
    Jorge

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Quando um monólogo se torna diálogo...